REFLEXÕES SOBRE O RELATO DE UM VIAJANTE BRASILEIRO AO EXTREMO ORIENTE NO SÉCULO XIX: DA FRANÇA AO JAPÃO DE FRANCISCO ANTONIO DE ALMEIDA
Kelly Yshida
“Acaba de publicar-se um precioso volume intitulado Da França ao Japão pelo nosso amigo Dr. Francisco Antonio de Almeida. Compendía esta importante obra a narração de viagem e descripção histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros paizes da Asia. O autor trata d’estes assumptos com a critica e a observação que pôde exercer, quando, como adido á comissão do governo francez foi ao Japão em 1874 acompanhar as observações da passagem de Venus. A obra é ilustrada, e contém uma minuciosa carta do Imperio do Japão, excelentemente gravada.” (Gazeta de Notícias, 12.01.1879)
Assim foi anunciado o livro Da França ao Japão: narração de viagem e descrição histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia, publicado em 1879 pela Typographia do Apóstolo e Imperial Lithographia de A. Speltz. Este foi, de acordo com a produção acadêmica, o primeiro relato de viagem de um brasileiro sobre o Japão. O autor, Francisco Antônio de Almeida, foi um astrônomo enviado pelo diretor do Observatório Nacional, Conde de Prados, para estudar na França e que, por solicitação do governo imperial brasileiro, participou da missão francesa ao Japão para observação da passagem de Vênus diante do Sol, em 1874. Na obra foram apresentadas questões como a curiosidade pelo exótico, o interesse científico, os costumes e cenários pelo seu caminho ao oriente, bem como notas sobre o próprio Brasil e a conjuntura internacional.
Almeida foi um viajante de curta estadia, diferente de Aluisio Azevedo ou Oliveira Lima, que residiram no país por conta dos seus serviços diplomáticos. Isto implica que o então cientista construiu sua imagem do Japão na sequência das observações que fez durante o percurso do navio. Suas considerações são de uma vivência específica. Provável que não tenha vivido o cotidiano como fez Azevedo, tampouco tenha tido relações afetivas intensas como Wenceslau de Moraes.
Não há dúvidas de que quando um viajante, anterior ao século XX, propunha-se a participar de uma jornada intercontinental o cenário era bastante distinto do atual. O longo período em navios, a distribuição da alimentação e as condições de higiene, bem como a relação que se estabelecia com a tripulação e os diversos encontros ocorridos nos locais em que atracavam, tornavam não apenas a chegada, mas a própria viagem capaz de estabelecer relações e produzir diversos materiais. Diante de um mundo em que havia muito a ser conhecido e onde o excêntrico fascinava, os relatos se tornam objetos que permitem questionarmos tanto o local de origem quanto o cenário que se abria aos olhos dos que partiam.
Mesmo considerando a potencialidade criativa, há um vínculo entre a obra e o autor que não é, de forma alguma, alheio à sociedade e ao tempo em que vive. O escritor tem seus limites, suas condições, vive determinada realidade, e aquilo que produz não é imune a isto. Imerso neste meio, ele o referencia mesmo sem predisposição em fazê-lo. No caso do relato, entende-se que há a pretensão de escrever sobre o outro, mas há também referências que não precisam ser premeditadas. Neste sentido, é alguém que compreende a realidade, transforma e exprime de acordo com os valores, linguagens e modos de apresentação que lhes eram familiares.
O astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão foi o pesquisador que mais se dedicou sobre a trajetória de Almeida, ele demonstra que sua atividade foi de notória importância para a astronomia brasileira. Na descrição do verbete sobre o autor, no seu Dicionário enciclopédico de Astronomia e Aeronáutica, está que era doutor em ciências físicas e matemática e que regeu a cadeira do Curso de Minas da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Além disso, comenta “o escritor e astrônomo francês C. Flammarion, em Etudes eu Lectures sur l’Astronomie, no volume 8, publicado em 1877, exclusivamente dedicado ao histórico das passagens de Vênus, cita Almeida Jr. como colaborador do astrônomo francês J. Janssen nas experiências efetuadas com o revólver fotográfico, em Nagasaki” (MOURÃO, 1987, p.23-24).
No século XIX, a passagem de Vênus ocorreu duas vezes, 1874 e 1882. Contudo foi na primeira que ocorreu a atuação do astrônomo brasileiro: “During the occasion of the Venus transit in 9 December 1874 in Nagasaki, Japan, a young brazilian astronomer, Francisco de Almeida participates in the French mission operating the French astronomer Jules Janssen’s (1824-1907) astronomical revolver, considered the predecessor of the movie system” (MOURÃO, 2004, p.154).
Anterior a esta é a descrição de Augusto Victorino Alves Sacramento Blake, presente no Diccionario Bibliographico Brazileiro, publicado ainda durante a vida de Almeida, em 1893, pela Imprensa Nacional. Detalhava:
“ Francisco Antonio de Almeida – Filho do coronel Francisco Antonio de Almeida, doutor em sciencias physicas e mathematicas e cavaleiro da ordem da Rosa, regeu interinamente a segunda cadeira do curso de minas da escola polytechnica; viajou pela Europa e, a convite do governo imperial, foi addido à comissão do governo francez encarregada de observar a passagem de Venus no Japão em 1874. Exercia o cargo de diretor do Diario Official e dele foi exonerado, quando o general Deodoro deixou a presidência da Republica; depois, acusado de entrar na conspiração de 10 de abril de 1892, foi preso e recolhido à fortaleza de S. João. Escreveu:
- Noticia sobre as minas de ferro de Jacupiranguinha e bases de um projecto de exploração: memoria apresentada a S. Ex. o Sr. Visconde do Rio Branco, diretor da escola polytechnica. Rio de Janeiro, 1878, 40 pags, in-8º
- A paralaxe do sol e as passagens de Venus, acompanhadas de uma carta para a passagem do mesmo planeta a 6 de dezembro de 1882, que será visto no Brazil; organizada para o meridiano do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1878.
- Da França ao Japão: narração de viagem e descripção histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros paizes da Asia. Rio de Janeiro, 1879, 236 pags. In-4º - Este livro é nitidamente impresso, ilustrado com varias estampas, precedido do retrato do autor e tem no fim a:
- Carta do império do Japão, organizada segundo documentos officiaes. Rio de Janeiro, 1878.
- A federação e a república. Rio de Janeiro, 1889. (BLAKE, 1970, p. 390)”
Estas são as principais descrições sobre o autor. A produção foi comentada e propagandeada em periódicos da época. As imagens foram produzidas pela Imperial Lithographia de A. Speltz, e a parte textual foi impressa pela Typographia do Apostolo. Estes desenhos eram assinados pelo próprio Speltz, em conjunto com Bordallo Pinheiro e Joseph Mill. Os três artistas eram estrangeiros, tendo em vista que na primeira metade do século XIX a atividade gráfica era marcadamente exercida por europeus que, na sequência, formaram os ilustradores nacionais; vale perceber que nestes anos 1870 estes estrangeiros eram atacados por suas críticas à realidade brasileira.
As imagens presentes no livro eram um chamariz para a obra, ainda mais por algumas serem coloridas e contarem com assinatura de homens reconhecidos por atuarem nos periódicos ilustrados da época. Segue abaixo a lista das ilustrações com suas temáticas:
Título
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Legenda
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Tipo
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China
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Mandarim civil
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Colorida
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Aden
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Jovem criado de Aden
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Monocromática
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Aden
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Musicos de Aden
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Monocromática
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Ceylão
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Lettrado indiano
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Monocromática
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Ceylão
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Pollotiqueiro indiano
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Monocromática
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Ceylão
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Nogociante do Ceylão
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Monocromática
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Ceylão
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Mulher cinguleza
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Monocromática
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-
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Manifesto publicado pelos chins
contra os estrangeiros
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Monocromática
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China
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Mulher china
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Monocromática
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Japão
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Imperantes do Japão
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Monocromática
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China
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Dama chineza e sua criada
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Colorida
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Japão
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Principe Japonez
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Monocromática
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Japão
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Barbeiro japonez
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Monocromática
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Japão
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Jovens japonezas tocando bandolim
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Monocromática
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Japão
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Dama japoneza dormindo a sesta
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Monocromática
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Japão
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Barca de passeio tripulada por mulheres
japonezas
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Colorida
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Japão
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Jovem dama japoneza e sua criada
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Colorida
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Carta do Imperio do Japão org.
segundo documentos officiaes
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Colorida
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O livro trazia temáticas que já estavam nos debates nacionais, como a possível imigração asiática, mas seu suposto pioneirismo em descrever a experiência de quem presenciou a realidade do Extremo Oriente dava subsídios para novas argumentações. Almeida trouxe em seu livro a trajetória desde Marselha, de cujo porto saiu no dia 19 de agosto de 1874 a bordo do Ava, da francesa Compagnie des messageries maritimes. Neste meio, nos dezoito capítulos que compõem o relato, tratou da passagem por lugares como a Itália, Egito, Aden (Iêmen), Ceylão (Sri Lanka), Malacca (Malásia), Singapura, Conchinchina (Vietnã), Hong-Kong, Macau, China, Japão. A chegada ao destino é apresentada a partir do nono capítulo.
O Egito foi a primeira parada fora da Europa. Foi também onde o autor começou a apresentar a relação e a interferência ocidental no oriente.
“Infelizmente, quando pelo incessante trabalho do progresso, era de esperar a regeneração das grandes nações da antiguidade, vemos, ao contrario, que o engrandecimento dos paizes novos importa na ruina d’aquelles, que dispoem de uma seiva mais pobre, e de cuja circulação mais lenta resulta atraso para suas artes e sciencias. Será esta a justa explicação da decadencia dos antigos povos, outr’ora capazes de grandes commettimentos, como demonstrão seos monumentos, e hoje, apologistas empedernidos das velhas instituições, e intolerantes sectários da escola de Epicuro? De certo, esta causa não se opporia á marcha triumphante da civilização moderna se, em nome do seo mais forte baluarte, a liberdade, ambiciosas nações não excogitassem pérfidas ardilezas para assenhorearem-se, pela força ou astucia, arbítrios supremos de seos destinos.”
É marcante a imagem de um “velho mundo” que se opõe a um mundo “novo” e supostamente “civilizado”. Em Da França ao Japão a passagem de Vênus ou os debates científicos não são centrais, embora o autor não deixe de comentar questões da astronomia, fauna, flora e do desenvolvimento tecnológico. Mas são os costumes das comunidades que encontra, bem como os exotismos, que formam os principais comentários de Almeida. Isto faz com que a narrativa seja acessível ao leitor alfabetizado, mas sem conhecimentos específicos; diferente de A paralaxe do sol, outra obra do autor elaborada a partir da viagem.
Alguns temas são recorrentes no relato, como as diversas populações, suas estéticas, costumes e atividades. Também importa ao viajante questões como a alimentação, os cenários das cidades, as manifestações artísticas e religiosas, partindo de uma perspectiva que coloca o desenvolvimento europeu como a base de comparação. Além disso, é presente seu debate sobre a Igreja Católica, especialmente quando comenta os movimentos de expansão à China e ao Japão praticados por jesuítas. São pontos importantes não apenas para Almeida, mas também em outros relatos, como o de Aluísio Azevedo e Wenceslau de Moraes.
Impressiona o viajante a diversidade étnica em Port Said, a sensualidade das dançarinas do Egito, a expansão da arquitetura europeia em Saigon, a diversidade da população chinesa, a intensidade do comércio em Singapura. Não menos impressionante era a expansão imperialista, especialmente da Inglaterra.
No Japão, os viajantes do Ava encontraram uma sociedade adaptando-se a uma nova configuração. Afinal, a partir de 1868 o país estava na Era Meiji, período marcado por um processo de “modernização” aos olhos do Ocidente. Deixava de ter uma política caracterizada pelo isolacionismo vigente no Shogunato Tokugawa (1600-1868). A Restauração Meiji trazia uma ruptura política, econômica e social; isto, a partir de um esforço de urbanização, industrialização, porém com reestruturação política, econômica e mudanças de costumes.
Francisco Antonio de Almeida tinha uma compreensão positivada do japonês, o que contribuía para a imagem favorável diante da diversidade asiática. Além deste livro, a sua trajetória pública continuou após esta empreitada que lhe garantiu certo reconhecimento social. Posteriormente, lecionou no Curso de Minas da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e, a partir daí, atuou em diversos meios. Foi nomeado tenente coronel e delegado de polícia em Niterói em 1890 e diretor do Diário Official até 1892, quando exonerado por participar de conspiração contra o governo. Colocava-se como crítico de Floriano Peixoto e foi apresentado como participante da mobilização em 10 de abril de 1892, motivo pelo qual foi preso na Fortaleza de Villegagnon. Portava-se como republicano, abolicionista e contrário à atuação daquele governo.
Falar do Japão nesta obra implica, sem dúvidas, em falar do Brasil. Além disso, compreender estes trâmites é uma busca pelo cenário do século XIX e pelo modo como o relato de viagem foi um meio importante de espraiamento e formação de visões de mundo. Entram nessa narrativa o cotidiano, a política e a consequente surpresa ao verem o Japão se aproximar da cultura Ocidental, pelo seu caráter “modernizador” e, em visões mais críticas, nocivo.
As fontes mostram dois países em busca da construção de suas identidades nacionais, suas diferenciações e afirmações no cenário internacional. A obra de Almeida acompanha o processo de aproximação do Brasil durante sua transição política com o Japão também em profunda modificação. Se a própria diferença de Oriente e Ocidente é criada por indivíduos, temos que levar em conta que nessa falta de espontaneidade estão interesses variados. Os viajantes e seus relatos tiveram importante papel na constituição de um imaginário e vocabulário sobre os lugares que passaram a ter “presença no e para o Ocidente” (SAID, 2001, p.31). Com isso já havia ocorrido invasões, estabelecidas rotas comerciais, trânsitos, de modo a elaborar, dominar e torna útil o “outro”. A favor desta ideia,
“Todo um arquivo internamente estruturado é construído a partir da literatura que pertence a essas experiências. Disso surge um número restrito de condensações típicas: a viagem, a história, a fábula, o estereótipo, o confronto polêmico. Essas são as lentes pelas quais o Oriente é vivenciado, e elas moldam a linguagem, a percepção e a forma do encontro entre o Leste e o Oeste.” (SAID, 2001, p.96)
O novo é reelaborado como conhecido a ser explorado, cada vez mais familiar, mas ainda não totalmente, pois interpretado e apropriado pela cultura do observador. É o que Said considera como uma categoria mediana, cuja efetividade é ser “menos um modo de receber novas informações do que um método de controlar o que parece ser uma ameaça a alguma visão estabelecida das coisas” (SAID, 2001, p.97).
Aquele que tem contato e escreve também “fala” pelo outro, faz uma distinção geográfica, psicológica, sociológica, considerando que todo conhecimento produzido interfere no meio que se insere. O relato não está alheio às concepções de raça, poder, gênero, cultura, valores nos quais o viajante se constituiu enquanto indivíduo socialmente atuante. Pensar sobre os relatos é uma forma de compreender a “estrutura de dominação cultural” (SAID, 2001, p.56) ainda relevante, seja em questões mais abrangentes como políticas sociais e acordos internacionais, quanto sobre relações entre indivíduos em um mundo onde os trânsitos são cada vez mais constantes.
Referências
Kelly Yshida. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista Capes. E-mail: kellyshida@gmail.com
ALMEIDA, Francisco Antonio de. Da França ao Japão: Narração de viagem e descrição histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia. Rio de Janeiro: Typ. Do Apostolo e Imperial Lithographia de A. Speltz, 1879.
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionário Biliographico Brasileiro, Vol. 2: Letras C-Fr. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1970.
DEZEM, Rogério. Matizes do Amarelo: a gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo, Associação Editorial Humanitas, 2005.
MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987.
MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. The brazilian contribution to the observations of the transit of Venus. In: KURTZ, D. W. (ed.). Transit of Venus: New views of the solar system and galaxy. Proceedings IAU Colloquim. No. 196, Cambridge University Press: Reino Unido, 2004
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia. Das Letras, 2001.
Olá Kelly, gostaria de saber se Francisco Antônio de Almeida se alinhava ou era membro de algum grupo político no final do século XIX? Se sim, quais eram as figuras de seu círculo social/político?
ResponderExcluirEduardo José Neves Santos
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirOlá Eduardo, obrigada pela sua pergunta.
ExcluirEmbora não tenha grande reconhecimento como figura política da época, Francisco de Almeida circulava e atuava entre intelectuais e políticos vinculados às demandas republicanas e abolicionistas. Alguns episódios são exemplares: Em 1889, antes da proclamação da República, Almeida publicou "A Federação e a Monarchia", onde teceu duras críticas ao modo de governo vigente, mesmo recebendo incentivo deste em sua formação. Afirmava: “Olygarchia odiosa que não tem a coragem de mostrar-se tal qual ella é, fingindo amar a democracia, que a tem tantas vezes derrubado, a monarchia é de facto o governo da falsidade e da hypocrisia”. Já nos primeiros anos da República, apoiando o governo de Deodoro, foi nomeado tenente coronel, delegado de polícia e diretor do Diário Official. Posteriormente, foi exonarado deste cargo por participar de conspiração contra o governo de Floriano Peixoto; chegando a ser preso em 1892 devido à mobilização de oposição. Dentre os que tiveram neste evento há figuras como Olavo Bilac, José do Patrocínio e Pardal Mallet. No mais, ainda estou mapeando a circulação de Almeida, por isso afirmações de vinculos políticos mais estreitos seriam inconsistentes.
Att,
Kelly Y.
Bom dia Kelly,
ResponderExcluirGostaria de saber se as imagens presentes no livro, feitas pelos ilustradores Speltz, Bordallo Pinheiro e Joseph Mill, eram reproduções de ilustrações ou rascunhos feitos por Almeida? Ou eram criações que partiam da livre interpretação dos escritos do brasileiro? Também gostaria de saber sobre a circulação da obra? Foi reeditado ou publicado em outros países e outros idiomas visto à riqueza dessa produção?
Att, Patrícia Volk Schatz
Boa tarde, Patrícia!
ExcluirNo próprio relato, Francisco Antonio de Almeida indica que em certas situações as imagens foram obtidas por meio de fotografias. Considerando que se tratava de uma viagem de cientistas reconhecidos, com diversos recursos disponíveis, parece plausível ter acesso a elas. Já as demais, pelo o que analisei, são reproduções de outras formas de ilustrações que circulavam na época. Pelos detalhes acho pouco provável que tenham sido feitas a partir de rascunhos. Um fato interessante é que as gravuras coloridas eram noticiadas como um chamariz da obra, bem como o fato de serem assinadas por aqueles ilustradores.
Quanto à circulação, são poucos os exemplares disponíveis ainda hoje em bibliotecas públicas, o que dificulta o mapeamento neste sentido. O livro não se tornou um “best seller” da sua época, mas foi divulgado por periódicos, especialmente pela circulação de Almeida e por interesses transversais em torno da temática. Há exemplares encontrados na Portugal; mas sua tradução não ocorreu, embora o autor tenha dialogado constamente com referências estrangeiras.
Att,
Kelly Y.
Olá Kelly,
ResponderExcluirTenho outras questões referentes ao teu texto que é excelente!
Aluísio de Azevedo que exerceu funções diplomáticas no Japão também publicou escritos sobre a vivência no país asiático?
Quais são as principais observações que precisam ser feitas pelo pesquisador que trabalha com relatos de viagem?
Patrícia Volk Schatz
Olá, Patrícia! Muito obrigada!
ExcluirAluisio Azevedo escreveu sobre o Japão durante seu percurso como vice-cônsul em Yokohama, entre 1897 e 1899, mas o livro não chegou a ser publicado na época. Encontrado como esboços do que seria uma obra tardia, o texto foi intitulado “O Japão” e editado para publicação somente em 1984. Azevedo tratou da história e características do povo japonês em cinco capítulos, que acompanham desde o mito de origem até as vésperas da Revolução Meiji. Nesse sentido, sua produção é diferente da elaborada por Almeida, que se voltou ao percurso da viagem.
Parece-me imprescindível levar em conta que o relato decorre da interação entre duas pessoas/grupos/culturas que, em determinado momento, foram compreendidos como distintos, sem isso não haveria razão de tê-lo. Portanto, não se trata de uma descrição desinteressada. Exemplar disto é a análise de Edward Said em “Orientalismo”. Atentar a estas relações e suas razões é importante para entendermos a própria narrativa.
Outra questão que considero de grande relevância - e que talvez seja considerada lugar comum -, é que cada obra é resultado de seu tempo. Considero isto central e não tão simples. Podemos perceber em dimensões que vão além da experiência da viagem; afinal, a elaboração como um todo, incluindo sua materialidade, traz elementos importantes das condições e demandas da época.
Att,
Kelly Y.
Olá,
ResponderExcluirQue temática interessante, Kelly Shida!
Tenho uma pergunta. Na afirmação de que o "relato de viagem foi um meio importante de espraiamento e formação de visões de mundo", é possível fazer um relação com o surgimento de novos tipos de narrativas históricas durante o século XX?
Luciana Vargas Jardim
Olá Luciana, muito obrigada! Então, a afirmação está relacionada ao modo como os relatos de viagem serviram para apresentar/divulgar a existência e costumes de outras populações e lugares e, como sempre há intenções no que se escreve, também foram meios de divulgar teorias, ideias, posicionamentos políticos. Pensando no contexto anterior ao século XX - com uma imprensa já atuante, mas sem as tecnologias que temos hoje -, é notória a relevância dada àquele que esteve em contato com a outra realidade e que ganhava legitimidade para falar sobre ela. Quanto às narrativas históricas naquele momento, este viajante em específico não teve atuação semelhante a de Von Martius, por exemplo, cuja obra tem interesse historiográfico.
ExcluirAtt,
Kelly Y.
Kelly Yshida*
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