RAÍZES SOCIOCULTURAIS E POLÍTICAS DO TEATRO INDIANO
Ana Beatriz Pestana Gomes
Nesse breve ensaio pretende-se apresentar um panorama sociocultural e político da História do Teatro Indiano perpassando o teatro sânscrito, o teatro moderno no século XIX e o teatro político no século XX. No âmbito do teatro sânscrito, será apresentada a sua história, a dos poetas que escreveram os grandes poemas épicos indianos e o Natyashastra. Sobre o teatro moderno será apresentada a influência inglesa na arte teatral indiana no século XIX, assim como, o teatro em defesa da cultura nacional. Serão também apresentadas as tensões de natureza sociocultural e política que influenciaram a arte teatral nas quatro primeiras décadas do século XX e após a independência do país.
A Índia recebeu diversos povos em seu território ao longo da sua História e vivenciou assimilações advindas de diversas culturas (grega, turca, persa, portuguesa, francesa, inglesa e outras), o que a caracteriza como uma “colcha de retalhos” da história e riquíssima no âmbito cultural, artístico, religioso, linguístico, de tradições e etc. O teatro indiano ao longo da sua história também vem sendo agraciado e caracterizado por todas essas culturas que passaram e deixaram as suas contribuições artísticas pelo país.
As raízes do teatro indiano são originárias de rituais religiosos e de eventos sociais que tiveram as suas primeiras manifestações artísticas em festivais realizados em templos, vilarejos, aldeias e etc. Inicialmente as manifestações performáticas eram danças com músicas em saudação a deuses (exemplo: saudação a Shiva e a Ganesha). Com o passar do tempo, estas manifestações se desenvolveram e ganharam a forma de espetáculos com narrativas dramáticas que fizeram parte do teatro sânscrito.
O teatro sânscrito pode ser analisado através do âmbito popular e clássico. O teatro popular se formou de maneiras distintas em cada região da Índia e contempla diferentes estéticas artísticas que contribuem até hoje para o enriquecimento da diversidade cultural e teatral indiana (VYAS, 2008). Algumas características marcam o teatro popular, como por exemplo: a apresentação em locais públicos, à associação a multidões, a presença de narrativas que retratam temas cotidianos e a utilização de linguagem direta e de fácil assimilação (BANERJEE, 2011). O teatro de bonecos, por exemplo, é uma antiga tradição do teatro popular indiano, em que através de temas mitológicos, históricos e sociais são apresentadas distintas características regionais da cultura indiana (BANERJEE, 2011). São algumas formas de teatro popular existentes até hoje: o Khyal, o Maach, o Nautanki e o Swang.
A forma clássica do teatro sânscrito se desenvolveu com a integração de formatos artísticos advindos de rituais folclóricos e rituais religiosos. Alguns dos maiores escritores do teatro sânscrito clássico foram: Bhasa, Kalidasa, Bhavabhuti e Vishakhadatta(VYAS, 2008). São manifestações de teatro clássico: o Kutiyattam, o Krishnattam, o Koodiyattam, o Theyyam, o Kathakali e muitas outras. O teatro clássico indiano também continua até hoje a ser encenado na Índia em diferentes regiões que o realizam de acordo com as especificidades culturais e linguísticas de cada região. O período de prosperidade do teatro indiano sânscrito perdurou até as incursões árabes, período em que a cultura indiana antiga foi se transformando e a ela foram sendo integradas diferentes tradições artísticas. (BANERJEE, 2011).
O Natyashastra é uma obra muito importante para a história do teatro indiano e até hoje é uma fonte de inspiração para diretores de teatro, dramaturgos, atores, dançarinos, músicos e artistas das artes performativas (BANERJEE, 2011). Natya remete a drama e Shastra remete a escritura, manual, assim, o Natyashastra seria um manual para o drama indiano, que na estética artística hindu contempla o teatro, a dança e a música. A sua origem é considerada sagrada, o livro teria sido criado oralmente na última década antes do início do calendário cristão e posteriormente teria sido escrito. Acredita-se que a sua composição é originária dos Vedas, a poesia do Rig Veda, os sons do Sama Veda, os gestos do Yajur Veda e os sentimentos do Atharva Veda (NAG, 2013). Escrito na estrutura de uma resposta que Bharata fornece a sábios que solicitam que ele os explique sobre a importância de Natya, como ela surgiu, sobre o que ela deve tratar, e para quem ela foi feita, Bharata os responde detalhadamente sobre a arte do drama indiano, que seria importante para educar e inspirar aqueles que não podiam ler ou compreender os conteúdos presentes nos quatro vedas (SCHECHNER, 2001).
Os poetas sânscritos desenvolveram o material criativo dos épicos, lendas, histórias e mitos que formaram a base textual do teatro sânscrito representados até os dias atuais na Índia. Alguns dos mais importantes foram: Kalidasa, um dos escritores clássicos mais famosos da Índia, Valmiki, o primeiro escritor do Ramayana e Vyasa, o autor do Mahabharata (VYAS, 2008), dentre outros.
O teatro moderno indiano foi inaugurado pela presença inglesa na Índia e a sua gradual influência no teatro indiano desde o século XVIII e principalmente a partir do século XIX. Este teatro ocidentalizado acabou se desenvolvendo com maior intensidade nas regiões em que a presença inglesa era mais significativa, como Calcutá (NAG, 2013). Pouco a pouco o teatro britânico foi afirmando a sua força e o teatro indiano ganhou novas criações, estruturas arquitetônicas, começou a utilizar o palco italiano, experimentou novas técnicas de luz, cenografia, atuação e outras inovações (AHUJA, 2012).
Inicialmente as criações teatrais (nos moldes ocidentais) no século XIX eram restritas aos oficiais ingleses, entretanto, aos poucos elas foram se expandindo aos letrados e à classe alta indiana desejosa por arte e cultura do Ocidente. Criações shakespearianas foram utilizadas como forma de afirmar a cultura inglesa frente à indiana e Calcutá foi crucial para o desenvolvimento do colonialismo cultural. No final do século XIX, o rumo do teatro indiano começou a mudar com criações repletas de conteúdos políticos, que denunciavam opressões sofridas pelo povo indiano e defendiam ideais nacionalistas (SINGH, 2013).
Assim, o teatro político indiano foi florescendo a partir de tensões sociais de natureza política, sendo os abusos realizados pela Coroa Britânica e pela classe alta indiana contra o povo os seus maiores impulsionadores (BANARJEE, 2013). Nil Darpan (The Indigo Planting Mirror) (MITRA, 1861), por exemplo, denunciou as injustiças do desumano sistema de exploração dos agricultores de índigo de Bengala e retratou as suas insatisfações e aspirações por melhores condições de vida. Em um período em que o teatro apresentava em cena os interesses da classe privilegiada indiana, esta peça denunciou a falta de humanidade dos colonizadores no relacionamento com os agricultores e se tornou um marco para a História do teatro político indiano. Após esta peça muitas outras foram escritas e encenadas como forma de protesto social, sendo muita delas censuradas.
No século XX, a manifestação teatral política indiana intensificou-se a partir da década de 1930 sob a influência de ideais revolucionários que chegavam ao país através de indianos que saíam para estudar e explorar outras culturas e estruturas socioculturais e políticas. A Índia encontrava-se imersa em um contexto sociopolítico repleto de movimentos civis que defendiam diversificados interesses do povo, como por exemplo: a Indian Progressive Writer’s Association e a Indian People's Theatre Association (IPTA), que lutaram contra o imperialismo e o fascismo (BHATIA, 1997). A IPTA foi criada por artistas ativistas que tinham o intuito de integrar o teatro aos demais movimentos nacionalistas na luta contra a calamidade instalada no país devido a sanções da Coroa britânica aos movimentos de emancipação, as consequências da Segunda Guerra Mundial, a crise de fome de Bengala, dentre outros fatores (AGRAWAL, 2013). Este movimento cultural marcou a história do teatro político indiano e serviu de base para muitos outros grupos de teatro político que surgiram no país posteriormente.
Após a independência da Índia em 1947 e a instauração do governo nacional, muitas contradições sociopolíticas eclodiram, desapontando ideologicamente os movimentos revolucionários que lutaram pela independência e por uma ideia de nação igualitária nas décadas de 1930 e 1940. Diversos movimentos de teatro político se enfraqueceram nos moldes em que eram realizados até então, precisaram reformular as suas estratégias de atuação e continuaram a praticar a arte teatral em prol da superação de desafios sociais, econômicos, culturais e políticos, como por exemplo: transformar a opressão do pensamento sofrida em expressão do pensamento indiano, transformar a imposição da língua e da cultura do dominador em afirmação das línguas e das culturas do país, fortalecer a democracia do país, transformar as políticas de dominação em políticas de bem-estar, transformar a ideologia da castração para a de humanização, e muitas outras questões (KUMAR, 2014). Atualmente muitos profissionais do teatro indiano continuam trabalhando em prol do seu desenvolvimento em diálogo com a multiplicidade das riquezas locais, dos mitos, épicos, lendas, danças, da espiritualidade e etc.
A presente comunicação chega ao seu fim concluindo que a História do Teatro Indiano é riquíssima artística, cultural e politicamente, e que o que se entende hoje por Teatro Indiano é produto de milhares de anos de história e de influências de diferentes povos e culturas que ajudaram a construir o território das tradições artísticas do país. Assim, para compreender com profundidade a diversidade do teatro indiano é preciso ter em mente inúmeros fatores (diferentes crenças, castas, rituais, contingencias sociopolíticas, culturais e econômicas, etc.), pois desta maneira é possível realizar os mergulhos intelectuais necessários para o entendimento das nuances artísticas encontradas nas diferentes regiões da Índia.
Referências
Ana Beatriz Pestana é doutoranda em História Política (PPGH - Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e mestre em Filosofia (Universidade de Lisboa). Realiza pesquisas históricas e filosóficas sobre movimentos teatrais políticos, no doutorado investiga o Teatro Político Indiano e no mestrado investigou o Teatro Político Alemão. Atualmente é pesquisadora do Programa de Estudos Indianos da UERJ e membro do conselho editorial discente da revista Dia-Logos do PPGH da UERJ. Orientador de Tese (PPGH-UERJ): Professor Dr. Edgard Leite Ferreira Neto. E-mail: anabeatrizpestana@gmail.com
AGRAWAL, B. IPTA’s Contribution in Awakening Nationalism. The Criterion. Maharashtra, v. 4, 2013, p. 1-5.
BANARJEE, A. Evaluating the role of street theatre for social communication. Global Media Journal - Indian Edition. Calcutta, v. 4, n. 2, 2013, p. 1-18.
BANERJEE, U. K. Luminous Harmony: Indian Art And Culture. New Delhi: Niyogi Books, 2011.
BHATIA, N. Staging Resistance: The Indian People’s Theatre Association. In: Lisa Lowe and David Lloyd (editors). The Politics of Culture in the Shadow of Capital. USA: Duke University Press, 1997, p. 432-460.
KUMAR, B. Decolonizing the Indian Theatre. Language in India – Strengh for Today and Bright Hope for Tomorrow. Uttar Pradesh, v.: 14:4, 2014, p. 42-55.
MITRA, D. Nil Darpan or The Indigo Planting Mirror. Translated by James Long. Calcutta: Calcutta Printing and Publishing Press, no. 10, 1861.
NAG, B. Role of theatre and folk media in promoting social development. Global Media Journal- Indian Edition. Calcutta: Winter Issue, v. 4, n. 2, 2013, p. 1-23.
SCHECHNER, R. Rasaesthetics. The Drama Review. New York: The New York University, v. 45, issue 3, 2001, p. 27-50.
SINGH, M. Theatre and the making of Indian Nationalism during the colonial period. Periodic Research. Uttar Pradesh: v. II, issue August, 2013, p. 204-209.
VYAS, R. Incredible India. Ahmedabad: Akshara Prakashan, 2008.
Você saberia dizer por que a sociedade indiana utiliza tanto as perfomances com dança em suas apresentações teatrais?
ResponderExcluirIvan de Freitas Vasconcelos Junior
Caro Ivan,
ResponderExcluirO Teatro Indiano tradicional engloba artes de diferentes naturezas, como por exemplo: a música, a dança e o teatro, por isso, para eles é normal utilizar a dança e outras artes em suas performances, pois isto representa para eles o que nós consideramos como teatro em sua completude. Como apresentei acima a própria origem do Natyashastra tem elementos de diferentes linguagens artísticas: "Acredita-se que a sua composição é originária dos Vedas, a poesia do Rig Veda, os sons do Sama Veda, os gestos do Yajur Veda e os sentimentos do Atharva Veda (NAG, 2013)".
E mesmo criações teatrais mais contemporâneas, muitas vezes continuam levando para cena o entendimento deste teatro com a presença de outras artes, como por exemplo a dança.
Espero ter respondido.
Ana Beatriz Pestana Gomes
Nesse ensaio apreende-se nuances do teatro indiano. Uma delas a lúdica inserção de bonecos nas performances. Ao lado disso, a abertura do referido teatro a contribuição de outras culturas, inclusive, no que tange a inscrição de motes políticos como, por exemplo, as denúncias levadas ao palco a partir do histórico processo de exploração do imperialismo britânico sobre a Índia. Pensando nisso, surgiu uma indagação: se levarmos em consideração os processos de transculturação, como descrever, talvez utilizando o texto teatral sânscrito, processos de apropriação da cultura inglesa pelo teatro indiano?
ResponderExcluirAss. Arcângelo da Silva Ferreira.
Olá, profa. Ana,
ResponderExcluirDuas indagações:
1) Poderia, por gentileza, comentar um pouquinho sobre a relação do teatro indiano com a Maha Devi?
2) Como se articulam, hoje, os movimentos feministas indianos com o histórico do teatro indiano?
Carlos A. B. Corrêa
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirCaro Carlos Côrrea,
ExcluirDe maneira geral, a inserção feminina no teatro político indiano começou a ganhar força na década de 1940 junto com o fortalecimento do teatro político indiano, que lutou por diversos temas, como por exemplo, a independência do país. Atualmente o movimento feminista teatral é muito mais forte e existem diversas peças sobre opressões sofridas pelas mulheres na Índia, como: os casamentos forçados, o pagamento de um elevado dote à família dos noivos, os sequestros de mulheres, dentre outras violações relacionadas aos direitos das mulheres.
Espero ter respondido à questão levantada.
Podemos trocar mais ideias sobre esta temática.
Ana Beatriz Pestana
Olá! Belo texto.
ResponderExcluirNo que diz respeito ao teatro político indiano havia outras punições além da censura para os artistas que em meio as tensões políticas buscavam o teatro como um espaço para fazer denuncias contra os colonizadores ingleses?
Mariana Melo Angelino
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirCara Mariana Melo,
ExcluirAs formas de censura realizadas pelos ingleses foram de diversas naturezas, como por exemplo: a proibição de textos, o fechamento de teatros, a aplicação de multas, a prisão de artistas, dentre muitas outras formas de opressão, que começaram no século XIX e continuaram de maneira cada vez mais intensa até a independência do país em 1947. Se te interessar, podemos trocar mais ideias sobre esta temática por e-mail.
Ana Beatriz Pestana
O Teatro Ocidental possui elementos de performance parecida com o teatro indiano? Ou em sua concepção são casos distintos?
ResponderExcluirGigliele Pereira fontes
Cara Gigliele Pereira Fontes,
ExcluirSe pensarmos em termos tradicionais o teatro indiano possui características performáticas muito diferentes do teatro ocidental, visto que ele é muito mais interessado na exploração das emoções e dos sentimentos, enquanto o teatro ocidental acaba por explorar mais questões existencialistas. Entretanto, na contemporaneidade o teatro indiano recebe muitas influências do teatro ocidental e vice-versa, estando assim, as criações artísticas repletas de elementos ocidentais e orientais. Podemos trocar mais ideias sobre esta temática por e-mail.
Ana Beatriz Pestana
Professora como o teatro impactou de certa forma, no contexto histórico que você colocou no seu texto?
ResponderExcluirCaro,
ExcluirO teatro indiano, assim como em outras partes do mundo, foi e continua sendo muito influenciado pelos diferentes contextos históricos e também os influencia. Assim, o que apresentei no texto acima foi um panorama de como as diferentes realidades socioculturais e políticas influenciaram motivações criativas teatrais indianas e como também as criações contribuíram para a construção de diferentes entendimentos sociais. Podemos trocar mais ideias sobre esta temática por e-mail.
Ana Beatriz Pestana
Olá Ana Beatriz! Parabéns pelo texto, brilhante! As explanações e a clareza da sua comunicação são muito importantes para um tema ainda tão pouco trabalhado em língua portuguesa. Gostaria de discutir, a partir das suas pesquisas, sobre estes espaços que eu estou denominando de "entrelugares" (Homi Bhabha), onde atualmente se encontram o Teatro e a Dança Clássica Indiana em suas origens num lugar comum (Natyashastra). A minha observação vem mais ao encontro de te possibilitar falar nos um pouco mais, haja vista a riqueza e a relevância da sua temática de estudos.
ResponderExcluirOlá Jorge Lúzio! Obrigada pelas considerações e pela questão levantada. A dança e o teatro fazem parte do drama indiano clássico em suas origens. Nas pesquisas que venho realizando sobre o teatro político indiano nos séculos XIX e XX, existem diversas criações teatrais que têm a dança como um elemento, o que me faz concluir que mesmo no teatro indiano moderno e contemporâneo a dança continua a aparecer como uma linguagem artística muito utilizada. Podemos debater mais sobre o tema por e-mail ou em outra oportunidade.
ExcluirAna Beatriz Pestana
Caro Arcângelo,
ResponderExcluirDe maneira geral, a presença inglesa na Índia influenciou de diversas formas o teatro indiano, levando novas técnicas, estruturas teatrais e narrativas ocidentais. Não se pode deixar de ressaltar, entretanto, que o teatro e outras manifestações culturais levadas pelos ingleses para a Índia foram também uma forma de estabelecer controle social ideológico através da afirmação da superioridade e do poderio inglês frente aos indianos.
Espero ter respondido a sua questão, se quiser debater mais sobre o assunto, podemos trocar ideias por e-mail.
Ana Beatriz Pestana