Felipe Borges & Saulo Silva

O COLÉGIO DE SÃO PAULO EM GOA: NOTAS PRELIMINARES SOBRE CIÊNCIA, CURRÍCULO E ORGANIZAÇÃO
Felipe Augusto Fernandes Borges
Saulo Henrique Justiniano Silva

Este trabalho busca sintetizar conclusões parciais da pesquisa de doutoramento intitulada “O Seminário de Santa Fé e o Colégio de São Paulo de Goa: trajetórias de uma instituição portuguesa na Índia (1541-1558)”.

A Companhia de Jesus configurou-se ao longo de sua existência como uma ordem fortemente ligada às práticas de educação e ensino, seja por meio do ensino das primeiras letras e da catequese, da evangelização ou mesmo por meio dos colégios. Conforme Costa (2004), as atividades educacionais não figuravam entre os objetivos que impulsionaram Loyola e seus companheiros a fundarem a ordem. Todavia, à medida que a Companhia ampliou seu raio de atuação, principalmente nas obras e missões do Padroado Português, a educação foi se tornando uma marca dos jesuítas.

A partir do desenvolvimento de suas atividades educacionais, a Companhia busca também a sua institucionalização. Esta forma de institucionalização dar-se-á por meio da fundação e atribuição de Colégios à Companhia de Jesus. A partir das primeiras experiências, os Colégios passam a ser espaços institucionais de grande importância para a ordem, visto que para além de instituições apenas ligadas ao ensino tornavam-se centros de propagação da doutrina cristã e ainda da cultura ocidental. Os números nos mostram a relevância dada aos colégios na trajetória jesuítica dos séculos XVI a XVIII. Ainda citando Costa (2004, p.219), em 1556 existiam 35 colégios em funcionamento; em 1615 o número era de 372 e, em 1773 (ano da extinção da Companhia) os colégios eram 546 na Europa e 123 fora dela, em um total de 669. O crescimento numérico de colégios e seminários nos dá a visão de como a Companhia julgou importantes tais instituições para o desenvolvimento das missões, principalmente as do Ultramar.

Convertidos em centros unificadores do planejamento e ação da Companhia de Jesus, os colégios desempenhavam importante papel de formação cultural tanto para nativos das missões fora da Europa quanto para a formação de novos padres. No caso da formação de sacerdotes, podiam eles ser destinados à própria Companhia ou mesmo à formação de um clero nativo, como aconteceu no caso da Índia.

As principais fontes documentais utilizadas na pesquisa consistem nas coletâneas: “Documenta Índica”, organizada pelo padre jesuíta Joseph Wicki, e “Documentação para a História do Padroado Português do Oriente”, organizada e comentada pelo padre António da Silva Rego.

A expansão ultramarina portuguesa
Um elemento essencial na história de Portugal é seu processo expansionista, iniciado no século XV, consolidando as suas feições de “império” alcançadas no século XVI. Sobre o caráter da expansão lusa, Coelho (2000) no diz que:

“Na expansão portuguesa houve de tudo um pouco: descobrimentos, em absoluto, e não apenas para os europeus, de novas terras, novos mares, novas estrelas, como diria Pedro Nunes, e viagens de descobrimento; evangelização com mão armada e também com martírio e novos métodos linguísticos; transfega e troca de riquezas, de ideias, de técnicas, de animais e de plantas; guerra e paz armada com violência extrema de todas as partes; fome de honra; coragem para além do que pode a força humana; altruísmo, sacrifício; antropofagia no limite e recusa dela; troca de ideias, de cerimônias, de vocábulos; confronto de culturas.” (Coelho, 2000, p. 60-61)

A expansão portuguesa provocou profundas mudanças de cunho político, econômico, religioso e cultural, advindas principalmente dos contatos e trocas com culturas, religiões e costumes até então pouco conhecidos dos portugueses, e mesmo dos europeus de forma geral.

A partir da tomada de Ceuta, em 1415, as viagens dos descobrimentos propriamente ditas têm início: em 1419, os portugueses descobrem o arquipélago da Madeira, em 1424 as Ilhas Canárias, em 1427 aos Açores e, em 1434, Gil Eanes atinge o Cabo Bojador. Essas viagens estendem-se durante o século XV: Cabo Verde em 1456, Ilhas do Príncipe e São Tomé, em 1471, seguido da conquista de Tânger, culminando com a passagem pelo Cabo das Tormentas (depois rebatizado de Cabo da Boa Esperança) por Vasco da Gama, em 1499, e a chegada e instalação dos domínios portugueses no Brasil, em 1500 (Boxer, 2002).

A partir da viagem de Vasco da Gama, em 1499, estabeleceu-se uma hegemonia lusitana no Atlântico Sul e em seus territórios costeiros. A partir de então se inaugura um novo caminho para as Índias, caminho este que ficou conhecido como a Rota do Cabo da Boa Esperança, ou simplesmente, a Rota do Cabo.

A partir de 1499 os portugueses estabeleceram a chamada Carreira da Índia. Navios carregados de mercadores, negociantes e padres, estabeleceram uma nova rota comercial que estreitou os contatos entre o Ocidente e o Oriente. No entanto, os interesses dos portugueses não se limitavam as especiarias. A esse respeito é importante lembrar o diálogo estabelecido entre o degredado que Vasco da Gama – o primeiro português a navegar até a Índia – enviou à terra quando chegou a Calicute e “dois mouros de Tunes, que sabiam falar castelhano e genovês” (Velho, 1998, p.75). Segundo o autor do “Diário da Viagem de Vasco da Gama”, os mouros perguntaram ao degredado o que os portugueses vinham buscar tão longe. A essa indagação o degredado teria respondido: “viemos buscar cristãos e especiarias” (Velho, 1998, p.75).

De forma predominante, a historiografia tem interpretado a resposta do degredado sobre a busca de Cristãos como uma “justificativa”, uma desculpa para os interesses econômicos dos portugueses. No entanto, estudos mais recentes têm procurado mostrar a importância da religião, e mais especificamente do messianismo, como motivadores da expansão portuguesa (Menezes, 2015). Assim, além dos inegáveis interesses despertados pelo comércio de especiarias e a busca por metais preciosos, os ideais cruzadísticos, a busca de uma aliança com o mítico Reino de Preste João e o desejo de expandir a fé cristã, foram poderosos motores da expansão.

O Colégio de São Paulo em Goa
Embora membros do clero estivessem sempre presentes nos navios portugueses, é somente em 1542 que desembarcam na Índia os primeiros jesuítas. Liderados pelo padre Francisco Xavier, os primeiros membros da Companhia desembarcaram no Oriente, em 6 de maio daquele ano, momento em que estavam acompanhados pelo então novo governador geral, Martin Afonso de Souza.

As missões orientais, inicialmente na Índia, foram as primeiras do Ultramar a receber os padres da Companhia e foram também as primeiras assumidas por eles. Lá, como posteriormente também nas demais possessões portuguesas, os inacianos fundaram e assumiram colégios e seminários.

Na cidade de Goa, centro de propagação das atividades da Companhia de Jesus na Índia, foi fundado, antes mesmo da sua chegada, o Seminário de Santa Fé, que seria o germe de criação do futuro Colégio de São Paulo. O seminário não foi fundado pelos membros da Companhia, “mas passou a ser administrado por eles, após instâncias das autoridades civis e eclesiásticas de Goa junto ao próprio Francisco Xavier” (Tavares, 2004, p.112).

O seminário de Santa Fé em Goa foi fundado no ano de 1541, portanto antes da chegada dos padres da Companhia de Jesus, por iniciativa do então Vigário Geral, padre Miguel Vaz, unido ao padre franciscano Diogo de Borba. De início eles se juntaram a outras autoridades religiosas e civis da cidade para fundação da Confraria da Conversão à Fé. Refletindo o esforço de ambos, já em 25 de julho do mesmo ano foram publicados os estatutos da Confraria, que, na cláusula de número 12 externava o compromisso de que ela teria a responsabilidade de criar e manter um seminário, a fim de formar um clero local (Tavares, 2007).

Inicialmente, a ideia era de que os franciscanos assumissem o cuidado do seminário, tendo sido tal plano, porém, inviabilizado com o tempo. Concomitante a esta situação, ocorre a chegada dos jesuítas, liderados por Francisco Xavier, em 1542. Ainda nesse ano, em carta datada de 20 de setembro, Xavier escreve a Inácio de Loyola, demonstrando que já havia uma solicitação em aberto, por parte do governador, para que os padres da Companhia servissem de “edifficios espirituales deste tan santo collegio” (In: Rego, 1950, p.37). Ou seja, já havia, naquele momento, um desejo das autoridades civis e eclesiásticas para que os jesuítas servissem, inicialmente, como professores no seminário.

Francisco Xavier não assumiu prontamente o seminário, talvez por ainda não possuir pessoal em quantidade suficiente para isso, ou mesmo por questionar a pertinência de tal empreitada para a missão jesuítica no Oriente (Tavares, 2007). Ainda assim, mesmo sem assumir a administração direta do Seminário, os inacianos foram, paulatinamente, tornando-se maioria. Francisco Xavier, em carta datada de 15 de janeiro de 1544, dirigida aos confrades de Roma, afirma que deixara o Padre Paulo Camarte – ou Micer Paulo, como era conhecido e é chamado nas cartas – no Seminário, onde ele “tiene cargo de los studiantes”, ao passo em que ele e o padre Francisco de Mansilhas foram para o Cabo de Camorim (In: Rego, 1950, p. 55). Segundo Tavares (2007), de início, os jesuítas assumiram a administração espiritual do Seminário, no entanto, a administração financeira teria sido assumida apenas depois de 1549.

A essa altura, o já citado padre Miguel Vaz estava em Portugal, em tentativas de, junto ao rei D. João III, viabilizar as condições para perpetuação do Seminário. Ao retornar a Goa, em 1546, o padre havia obtido a autorização real de rendas para o Colégio, cujo regulamento é datado de 27 de junho do mesmo ano (In: Rego, 1950, p. 353-362).

No regulamento fica claro que os jesuítas são os escolhidos para a administração do Colégio, mas não se coloca ainda, de forma clara, a sua completa autoridade sobre a instituição.

No ano de 1547 faleceram os padres Miguel Vaz e Diogo de Borba, pioneiros e idealizadores do Seminário. Em seguida, mediante aprovações do vice-rei D. João de Castro, do superior da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola e do próprio rei D. João III, o total controle do seminário passa finalmente para a Companhia de Jesus (Tavares, 2007).

A experiência da Companhia de Jesus no comando do Seminário de Santa Fé foi o germe de criação, em 1548, do Colégio de São Paulo, o principal colégio jesuítico da Índia (Manso, 2009). A partir da criação do colégio, o Seminário de Santa Fé lhe ficou anexo, mantendo, ainda, sua vocação inicial, que era a de formar um clero local. Já o Colégio de São Paulo tinha estrutura mais complexa, pois “era destinado a alunos de Filosofia e Teologia da Companhia e para todos aqueles que frequentavam outros colégios e manifestassem capacidades para estudos de Filosofia” (Manso, 2009, p. 170). Segundo Tavares (2007), o que se pretendia é que o Colégio de São Paulo fosse o equivalente oriental, no que se refere à formação intelectual dos alunos, ao Colégio de Santo Antão, em Lisboa.

Colégio de São Paulo, funcionamento, currículo e ciência
Como mostrado anteriormente, as ações de membros do clero que antecederam os jesuítas foram importantes para a fundação do Colégio de São Paulo. Nesse movimento, em 1540 foi fundada a chamada Confraria da Santa Fé, apossando-se (por meio de decreto régio) de bens confiscados após a destruição dos templos hindus de Goa, na década de 40 do século XVI. Em 1542 a Confraria funda o Seminário de Santa Fé, destinado a formar nativos para o clero local. Quando Francisco Xavier chega a Goa e tem os primeiros contatos com o Seminário, constata que a maioria dos alunos apenas sabia ler, escrever e rezar. Mesmo antes da Companhia de Jesus ser investida do controle do Seminário, Xavier já opina sobre a instituição, aconselhando que fossem introduzidas no ensino as matérias de Sacramentos e de Sagrada Escritura (Manso, 2005).

Inicialmente, o Seminário aceitava apenas alunos nativos puros, deixando de fora mestiços e portugueses. Essa política de admissão era justificada sob o argumento de que a convivência entre alunos mestiços, portugueses e indianos poderia resultar em discussões, brigas e desentendimentos (Wicki, 1948, p. 142). Os alunos entravam no Seminário entre os treze e quinze anos de idade para que fossem investidos do sacerdócio e retornassem para trabalhar como padres em suas comunidades nativas (Manso, 2005).

Ao assumirem a administração do seminário os jesuítas deram continuidade a essa diretriz, mantendo como objetivo do Seminário de Santa Fé formar clérigos nativos para atuarem na Índia. Não era objetivo preparar padres nativos regulares, mas sim padres seculares. Tudo indica que o clero nativo, formado no seminário, destinava-se apenas para o atendimento dos povos da Índia e, no máximo, de mestiços. Os portugueses seriam “atendidos” apenas por padres europeus. A corroborar essa constatação o padre Francisco Xavier, afirma que:

“[...] había dos razones por las que nom se podia reclutar de entre los nativos la Companhia de Jesús em la Índia: primeira, siendo La mayoria de ellos de carácter débil, nada se podria conseguir sin portugueses; y segunda, por que los portugueses de la India solo querian confesarse com Padres portugueses y nunca com indios e mestizos [...]” (In: Schurhammer, 1992, p.446)

Assim, a crença na necessidade de formar um clero indígena para atuação local fortalece a ideia da fundação do Colégio de São Paulo em Goa. Segundo Manso (2005), o Colégio de São Paulo, ao lado do Colégio da Madre de Deus em Macau, foram os dois principais centros de difusão da cultura europeia na Ásia. Em sua fundação, pretendia-se que o Colégio de São Paulo formasse intelectualmente um clero indígena capaz de atender as comunidades cristãs em toda região das missões asiáticas. De forma distinta ao que ocorria no seminário, o Colégio de São Paulo passou a admitir não apenas nativos e mestiços, mas também alunos portugueses. Além disso, o colégio passou a admitir alunos da própria Companhia, para os estudos de Filosofia e Teologia. Mesmo aqueles que porventura tivessem frequentado outros colégios e manifestassem interesse e capacidade para cursar os estudos de Filosofia poderiam ser aceitos (Manso, 2005).

Em 1548, o então Reitor, padre António Gomes, empreendeu uma reorganização do Colégio. Tendo por justificativa aquilo que considerou como baixo rendimento pedagógico e moral dos alunos indígenas, optou por separá-los dos alunos portugueses. Além disso, para o padre António Gomes o colégio deveria ser destinado apenas à formação superior. Esse procedimento fez com que os alunos nativos passassem a um plano secundário e muitos desistiram dos estudos no Colégio. Essas alterações, com o estabelecimento de restrições aos nativos, teve grandes proporções e causou grandes conflitos na cidade de Goa. Com a chegada do novo governador, Garcia de Sá, ainda em 1548, a normalidade foi restaurada, e os indígenas voltaram a ser admitidos no Colégio (Manso, 2009). Posteriormente, António Gomes seria ainda demovido do cargo de reitor e expulso da Companhia por Francisco Xavier.

Pela especificidade do local, no Colégio de São Paulo falava-se de oito a dez línguas ou dialetos distintos, o que inicialmente apresentou-se como uma barreira aos padres e professores. No início, enquanto os alunos ainda não falavam português, as aulas consistiam em ouvir e repetir aquilo que o professor falava. Em alguns momentos, utilizavam-se intérpretes para facilitar a comunicação entre os professores e alunos. Em 1548, o Padre Nicolau Lancelote escreve instruções em que descreve esta situação, uma verdadeira barreira linguística, e pede aos padres que aprendam as línguas locais, a fim de poder lançar mão do trabalho dos intérpretes o mais rápido possível (In: Schurhammer, 1992, p. 326-329).

O conjunto dos estudos no Colégio de São Paulo era formado por: três classes de latinidade, um curso de Artes (Filosofia), três lições de Teologia especulativa e moral, além de uma lição de Escritura Sagrada. Além disso, havia também aulas abertas a jesuítas e seculares onde se ensinavam as primeiras letras, ler, escrever e contar.

Vale lembrar que, na época a que estamos nos referindo neste trabalho, a Ratio Studiorum ainda não havia sido escrita e aprovada. Não obstante, acreditamos que as experiências vivenciadas no Colégio de São Paulo, bem como os planos de estudos que aí se desenrolavam contribuíam conjuntamente com o grande debate de formação de um plano ou linha geral de atuação educacional dentro da própria Companhia. Ainda, acreditamos que as linhas gerais da Ratio já estavam presentes na própria formação do jesuíta, no próprio modus operandi da Companhia, de modo que se pode dizer que os princípios fundamentais da Ratio já faziam parte da forma como se estruturava o ensino no Colégio de São Paulo, mesmo que o documento em si ainda não existisse em sua forma acabada (Manso, 2005). No entanto,não temos acesso a informações que permitam um aprofundamento sobre a forma como eram conduzidos os estudos, ou mesmo sobre a “natureza dos currículos”. Ainda a esse respeito, lemos em Teotónio Souza que:

“Mas nas escolas mais desenvolvidas, a cargo das ordens religiosas na Velha Goa, dos Jesuítas em Rachol, e dos Franciscanos em Reis Magos, o currículo incluía língua e literatura latina, conhecimentos religiosos artes liberais, incluindo música vocal e instrumental. Havia igualmente lições na língua vernácula, destinadas a formar catequistas, que depois regressavam às suas aldeias e auxiliavam os sacerdotes das suas paróquias na conversão dos outros aldeões. Na escola de S. Paulo, para rapazes, dirigida pelos jesuítas na cidade de Goa, prestava-se atenção especial à aritmética, porque essa era uma área muito apreciada pelos nativos de mente voltada para os negócios. Os relatos de Jesuítas da época dizem que não era raro encontrar adultos nas aulas de aritmética.” (Souza, 1994, p. 91)

Há divergências entre os autores a respeito do que era ensinado no Colégio de São Paulo, e de como era ensinado. No entanto Manso (2005) e Teotónio Souza (1994) concordam que as fontes para compreensão dos currículos em si são poucas e escassas. Manso (2005) afirma que, na prática, parece que existiam dois cursos, ou duas linhas de formação no Colégio de Goa: uma destinada àqueles que desejavam tornar-se padres, incluindo então os estudos o latim clássico, a Filosofia e Teologia Moral. Numa segunda linha, haveria um curso para aqueles que desejassem se tornar literatos e aprender Matemática.

As fontes e os analistas não mencionam o termo “Matemática” diretamente. Souza (1994) no excerto supracitado aponta uma “atenção especial à aritmética” enquanto em outros autores encontramos referência a “ensinar a contar”. Segundo Baldini “toda província missionária deveria dispor de um cursus studiorum completo” (1998, p.205), o que no caso, englobava três anos de Filosofia, com um ensino anual de Matemática. Segundo o mesmo autor, porém, durante muito tempo isso não foi uma completa realidade. Ainda assim, por vezes,

“[...] como nos colégios ibéricos, os professores de filosofia supriram a ausência da matemática inserindo um tratado da ‘esfera’ no curso de filosofia natural, mas semelhantes tratados elementares não davam uma preparação técnica” (Baldini, 1998, p.206).

Sendo assim, segundo o autor, ainda no século XVIII – e neste artigo estamos nos referindo ao século XVI – as missões dependiam da Europa no que tange ao pessoal preparado em Matemática e quase que totalmente para professores de Filosofia e Teologia.

Considerações Finais
A atuação da Companhia de Jesus no Oriente, principalmente na Índia, foi ampla e abrangente. Dentre todas as estratégias jesuíticas utilizadas para a conversão dos gentios e a difusão de uma cultura ocidental, os Colégios e Seminários se destacavam, pois estavam sempre presentes. Lembramos que “em todo o espaço ultramarino a Companhia propunha-se catequizar, ocidentalizar, sendo os seminários e colégios meios para obter tais objectivos” (Manso, 2005, p. 174).

Os colégios funcionavam como centros de uma tentativa de imposição da cultura ocidental. A princípio, o Seminário de Santa Fé e posteriormente o Colégio de São Paulo cumprem esse papel ao recrutar uma parcela da população nativa e formá-la sob matrizes de estudos e culturas europeias, ordenar alguns como padres e, então, enviá-los de volta às suas comunidades, esperando (e acreditando) em uma multiplicação desse esforço de cristianização da Índia.

O Colégio de São Paulo e o Seminário de Santa Fé foram um dos principais centros de propagação da cultura europeia na Índia. Ao fazermos esta afirmação, não pretendemos inferir que tenha havido uma sobreposição da cultura europeia às culturas locais, embora esse fosse o objetivo dos jesuítas.

Nesse sentido, pode-se falar de uma interação cultural ou de uma influência mútua de culturas entre portugueses e os povos da Índia. A interação cultural que ocorre nos colégios não é simétrica, pois aquele era um local privilegiado para a tentativa de imposição da cultura cristã ocidental. Contudo, os portugueses e os próprios jesuítas não eram imunes a cultura local. Isso pode ser observado no fato de que os padres e professores, por força das necessidades catequéticas, buscavam conhecer as culturas, as línguas e, dessa forma, conseguir um contato mais efetivo com seus estudantes.

Analisar a história do Colégio de São Paulo em Goa é buscar a compreensão da interação entre as culturas, da adaptação dos jesuítas, da receptividade que os povos nativos da Índia dispensavam àquelas novas culturas que os colonizadores portugueses, padres e seculares, tentavam lhes impor.

Referências
Felipe Augusto Fernandes Borges é doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. Atualmente trabalha como Pedagogo da Universidade Federal do Paraná em Jandaia do Sul - PR.
Contato: professorfelipeborges@gmail.com
Saulo Henrique Justiniano Silva é doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. Atua como professor da rede estadual de ensino do estado do Paraná e como professor da Faculdade Alvorada em Maringá – PR.
Contato: saulojusti@gmail.com

BALDINI, Ugo. As Assistências ibéricas da Companhia de Jesus e a actividade científica nas missões asiáticas (1578-1640). Alguns aspectos culturais e institucionais. Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, Abril-Junho, Tomo LIV, Fasc. 2, 1998.
BOXER, C. R. O Império Marítimo Português (1415-1825). São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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COSTA, Célio Juvenal. A racionalidade jesuítica em tempos de arredondamento do mundo: o Império Português (1540-1599). Tese de doutoramento. Piracicaba: Universidade Metodista de Piracicaba, 2004.
MANSO, Maria de Deus Beites. A Companhia de Jesus na Índia (1542-1622): Actividades Religiosas, Poderes e Contactos Culturais. Évora: Universidade de Évora; Macau: Universidade de Macau, 2009.
MANSO, Maria de Deus Beites. Convergências e divergências: o ensino nos colégios jesuítas de Goa e Cochim durante os séculos XVI - XVIII. In: L. M. Carolino; C. Z. Camenietzki (coords.). Jesuítas, ensino e ciência sécs. XVI - XVIII. Lisboa, Ed. Caleidoscópio, 2005. p. 163-181.
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WICKI, Joseph S. J. Documenta Indica. Vol I. Romae: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1948.

14 comentários:

  1. Olá. Bom trabalho. Faço duas questões.

    1- Sobre a questão em 1548, com a proibição, e depois retomada do ingresso de nativos no Colégio, eu gostaria que explicasse um pouco mais. Que tipo de tumulto ocorreu? Dos nativos que queriam ingressar? Como o governador agiu para apaziguar? Por que a Companhia cedeu?

    2- Sobre a conclusão. Os colégios realmente eram centros de imposição cultural? Pelo texto parece que havia muitos diálogos, como a ênfase na Matemática, que aparentemente era uma demanda ou um interesse nativo? Também havia o estudo em várias línguas, com formação nos idiomas nativos e uso de tradutores. E como é dito no começo, a educação não era algo previsto inicialmente pelos jesuítas, mas se tornou uma estratégia ao longo do curso da expansão religiosa. O colégio e a educação não podem ter sido um meio de diálogo, mais que de imposição?
    Mais que propagação de uma “cultura europeia” não seria de propagação de uma “cultura cristã”?

    Carlos Guilherme Rocha

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  2. Olá Carlos, obrigado pela participação.
    Sobre a primeira questão: o colégio fora criado inicialmente com o objetivo principal de formar um clero nativo. A Companhia de Jesus o recebeu sob esse prisma, numa condicional estabelecida já anteriormente. Um reitor jesuíta, Padre António Gomes, procedeu à expulsão dos nativos à revelia das demais autoridades civis e eclesiásticas de Goa, inclusive sem consultar o Provincial jesuíta no Oriente, Francisco Xavier, o que causou grande revolta na cidade. Dessa forma, Xavier regressou a Goa, demitindo o padre Gomes da reitoria do colégio (posteriormente mesmo o expulsando da Companhia de Jesus) e restabelecendo a antiga ordem.

    Sobre sua segunda colocação: temos claro a perspectiva do diálogo cultural. O próprio fato de que muitos padres jesuítas aprendiam as línguas, religiões, mitologias nativas comprovam isso. O fato de se estabelecer um colégio para nativos, com o intuito de que esses propagassem a religião cristã por meio das língua locais também está a nos mostrar um diálogo das culturas. Entretanto, quando usamos o termo "imposição" estamos a tratar do que o português pretendia e, certamente, o que se pretendia era a imposição e não o diálogo: o que não quer dizer que tenha de fato ocorrido assim.
    Com relação à propagação da cultura europeia, portuguesa ou cristã, enxergamos o português do século XVI como uma mistura disso tudo. No XVI ser português é ser cristão, a cultura portuguesa é uma cultura cristã, tornando-se difícil, a nosso ver, separar tais fatores. Portanto, acreditamos que, em tal contexto, uma cultura europeia ou uma cultura portuguesa torna-se quase um sinônimo de cultura cristã.

    Mais uma vez agradeço seu comentário e sua contribuição à nossa discussão.
    Abraços!

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  3. Olá Felipe e Saulo. Muito bom o texto, mas existe um antigo artigo de Wicki sobre o curriculo do Colégio de São Paulo que vocês poderiam procurar para resolver algumas das questões levantadas sobre este quesito. Quanto ao uso de colégios como focos de imposição cultural, a educação de conversos locais e escravos, por exemplo, se dava sob a forma de sermões. O colégio em si era, até onde sei, reservado para poucos, especialmente aqueles que se destinariam a ajudar e servir de intérpretes para os missionários. Somente no final do século XVI é que passa-se a cogitar a formação de clero nativo. Bons estudos! Ass: Rômulo Ehalt

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    1. PS: de quem é a tese de onde vcs basearam este texto? Fiquei sem entender. Ass: Rômulo Ehalt

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    2. Olá Rômulo, muito obrigado por seus comentários.
      Bem, a tese é minha (Felipe) e está ainda em desenvolvimento no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, sob a orientação do Prof. Dr. Sezinando Luiz Menezes.

      Quanto ao artigo do Padre Wicki, ficaria muito feliz em ter acesso a ele. Você sabe me dizer o título e onde o encontrar?

      Quanto à formação do clero nativo, o Colégio de São Paulo nasce de uma instituição anterior, o Seminário de Santa Fé. Este Seminário, por sua vez, fora fundado em 1541 pela Confraria de Conversão à Fé, encabeçada pelo padre Diogo de Borba e pelo vigário geral, padre Miguel Vaz, ambos franciscanos. No Estatuto da dita Confraria, disponível na Documenta Índica, já há o compromisso de fundar-se o Seminário de Santa Fé para formar um clero nativo, o que de fato ocorre. A partir de 1542 os jesuítas passam a, paulatinamente, fazer parte do Seminário, até que em 1547 recebem o total controle sobre o mesmo e fundam, em 1548, o Colégio de São Paulo, ficando-lhe o Seminário anexo.
      Nesse sentido, vemos que o Seminário e o Colégio têm, em suas raízes, a ideia de formação de um clero nativo.

      Mais uma vez agradeço e peço que, se puder, me passe a indicação do artigo do padre Wicki.
      Abraços
      Felipe

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    3. O título é “Das Schulwesen der Jesuiten in Portugiesisch-Indien 1599 bis 1759”, e está na revista Archivum Historicum Societatis Iesu, n. 55 de 1986. Ass: Rômulo Ehalt

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  4. Agradeço aos autores pelo excelente texto, que contribui muito para o nosso conhecimento.
    Questiono também a questão das relações culturais em torno do colégio. Existem relatos (tanto dos jesuítas), quanto da população local sobre as relações entre as culturas? Neste sentido, temos uma "imposição" ou uma relação?
    Rafael Egidio Leal e Silva
    IFPR Umuarama

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  5. Rafael, obrigado por sua participação.
    As fontes a que eu tenho acesso nesse momento são, sobretudo, jesuítas, portanto merecem e precisam ser questionadas, às vezes até postas em dúvida quanto à magnitude de alguns relatos.
    Tenho a impressão de que havia uma relação entre as culturas, pois os jesuítas, de certa forma, incorporam elementos da cultura local em sua prática evangelizadora. E não apenas isso, o simples fato da convivência e das relações em um lugar e com uma população estranhas ao seu meio original certamente causou nos padres e nos portugueses em geral possibilidades de relações, de diálogos culturais.
    Observando os questionamentos e as colocações aqui feitas vejo ser necessário guardar mais cuidado com o uso, em nosso trabalho, do termo "imposição": ao menos deixar mais claro que o que propomos não é que houve, de fato, a imposição, mas que essa era, em essência, a intenção jesuíta e portuguesa. A intenção não era o diálogo, a intenção era de imposição; mas, o que de fato ocorreu, a nosso ver, foi sim um diálogo e uma relação, ainda que muitas vezes assimétrico e marcado por diferentes formas e forças.
    Mais uma vez muito obrigado pelas colocações. Abraços!

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  6. Parabéns aos autores! Muito bom! Como sugestão, o belo texto me faz pensar também no Seminário de Rachol, em Salcete, o que levaria esta discussão para um alargamento do tema, tão pertinente para os estudos jesuíticos como fascinante para os leitores da Índia portuguesa. Parabéns!

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  7. Olá Jorge! Obrigado pela participação...!
    Sim, há o Seminário de Rachol, há um colégio em Cochim, um em Cangranor... São várias instituições jesuíticas na Índia, todas ricas oportunidades de pesquisa.
    Tenho certeza que algumas dessas instituições serão sim objetos de nossas pesquisas depois de concluído esse momento em especial do doutorado. Haverá mais pesquisas para o "depois da tese".
    Um grande abraço e mais uma vez obrigado!

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  8. Olá, gostaria de parabenizar os pesquisadores. Ainda não tinha tomado contato com a ação jesuíta na Índia e esse foi uma grata maneira de tomar contato com o tema. Gostaria de saber se, em suas pesquisas, vocês levantaram em meio as fontes uma narrativa sobre uma possível hibridação do cristianismo apropriado por esses clérigos nativos, uma ressignificação a partir de suas matrizes culturais indianas. Poderiam falar um pouco sobre?
    Grata.

    Juliane Roberta Santos Moreira

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  9. Olá Juliane. Primeiramente agradeço sua participação.
    Este texto é um excerto preliminar de minha pesquisa de doutorado, ainda em andamento.
    Contudo, de maneira muito genérica, posso dar alguns exemplos. Algo muito debatido na historiografia é a capacidade de adaptação aplicada às missões da Companhia de Jesus. Entre alguns, são emblemáticos os casos de Francisco Xavier no Japão, onde os missionários usavam vestimentas semelhantes às dos bonzos; Roberto Nóbili no Madurai, que se comportou com um sábio asceta, e ainda Mateus Ricci na China, que considerou alguns ritos chineses de veneração aos antepassados como compatíveis ao cristianismo.
    Sobre o assunto, interessantes reflexões são feitas por Célio Costa em sua tese de doutorado "A racionalidade jesuítica em tempos de arredondamento do mundo: o Império Português (1540-1599)" (2004), por Maria de Deus Manso em vários de seus artigos disponíveis online e, ainda, por Célia Tavares, em diversos artigos também disponíveis online e em sua tese "A cristandade insular: jesuítas e inquisidores em Goa (1540-1682)" também disponível online.
    A tese da Prof. Célia mostra como surgiram em Goa "castas cristãs", o que pode, de certa forma, ser visto como um hibridismo cristão-hindu.

    Mais uma vez obrigado por participar.
    Abraços

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