IMPERIALISMO, CONTATO, HIBRIDISMO: A VIDA NOS PORTOS ABERTOS JAPONESES NA ERA DA EXTRATERRITORIALIDADE (1859-1899)
Emannuel Henrich Reichert
Para compreender porque apenas o Japão, entre todos os países da Ásia, conseguiu se “modernizar” o suficiente durante a Era dos Impérios para ingressar no clube das potências imperialistas no final do oitocentos, pelo menos três fatores devem ser considerados. Primeiro, a Restauração Meiji de 1868, substituição do governo militar e comparativamente descentralizado do xogunato Tokugawa pelo governo centralizador, reformista e nacionalista de uma elite unida em torno da liderança simbólica do imperador Meiji. Dotada de disposição e recursos, a oligarquia governante empreendeu um programa de modernização ou ocidentalização em nome da segurança nacional, a fim de evitar as consequências da vulnerabilidade observada na China. Nisso teve sucesso, pois apesar de protestos populares, guerras internas e constante tensão no contato com os ocidentais, o Japão esteve livre de conflitos na escala da Rebelião Taiping ou da Revolta dos Boxers, e na década de 1890 conseguiu restabelecer relações diplomáticas mais equitativas com o Ocidente.
Segundo, a disposição dos dois regimes – o xogunato Tokugawa e o governo imperial Meiji – de negociar com os ocidentais, minimizando assim o enfrentamento militar. Em vez disso, as disputas internacionais foram predominantemente diplomáticas, através da negociação e interpretação de tratados. Entre 1854 e 1869, o Japão firmou acordos com quinze países ocidentais (os Estados Unidos e diversos europeus, da Grã-Bretanha e Rússia à Suíça e Portugal) onde estes últimos recebiam uma série de privilégios unilaterais. Os impostos de importação japoneses ficaram fixados em patamares reduzidos. Os governos ocidentais tinham jurisdição sobre seus cidadãos em território japonês, ou seja, podiam aplicar suas leis além das fronteiras, sistema chamado de extraterritorialidade. Os acordos também continham a cláusula de nação mais favorecida, pela qual qualquer concessão feita depois a outro país (a nação mais favorecida) se estendia automaticamente aos demais. Essa cláusula dificultou a renegociação dos tratados desiguais, por ser necessário obter o consenso dos ocidentais para revisar os privilégios adquiridos. Em contrapartida, a diplomacia podia ser uma forma de resistência: criava limites à atuação imperialista e concedia uma margem de manobra onde “oficiais japoneses empregaram seletivamente táticas planejadas para frustrar os planos ocidentais enquanto mantinham a ficção de aderir aos tratados” [Auslin, 2004: 4].
O terceiro fator, derivado do anterior, foi o sucesso em restringir espacialmente a presença ocidental. Apenas sete cidades do Japão foram abertas para estrangeiros. Fora delas, a circulação estrangeira se limitava ao pessoal diplomático, especialistas contratados pelo governo (em sua maioria professores, cientistas e engenheiros) e eventuais turistas que recebiam um passaporte especial para viajar temporariamente pelo interior. A importância da restrição espacial para a preservação da autonomia japonesa fica clara em uma comparação com o Havaí, outro reino-arquipélago do Pacífico que optou por fazer concessões aos países capitalistas e modernizar-se para mostrar um caráter “civilizado” e manter a independência. Porém, no Havaí investidores americanos adquiriram grandes extensões de terras, implementaram uma economia de plantation de cana de açúcar e estimularam a imigração de trabalhadores estrangeiros até os havaianos nativos serem a minoria da população. Por fim, derrubaram a monarquia e promoveram a anexação aos Estados Unidos [Hahn, 2016: 396]. O caso havaiano, embora extremo, ilustra os riscos políticos e econômicos de expor regiões pré-capitalistas ao pleno poder do capital.
As cidades abertas, por concentrarem praticamente toda a presença estrangeira no Japão, foram autênticas zonas de contato, lugares onde americanos, europeus, chineses e japoneses interagiam de maneiras complexas, apesar da sempre presente desigualdade de poder em favor dos ocidentais. Nas páginas que seguem, veremos melhor essas cidades: quais eram? Como funcionavam? Quem residia ali? Que espécie de contato ocorria?
As sete cidades abertas
Os termos gerais da presença estrangeira em território japonês foram estabelecidos pelo Tratado de Amizade e Comércio entre Estados Unidos e Japão de 1858 ou Tratado Harris, seguido como referência nos acordos posteriores com europeus, e duraram até a entrada em vigor de acordos mais equitativos em 1899. Os locais onde ocidentais podiam ir se dividiam em duas categorias. Os principais eram os treaty ports, portos abertos para comércio e residência. Quatro deles, escolhidos por suas localizações estratégicas, foram bem sucedidos: Yokohama, perto da capital Tóquio; Kobe ou Hyogo, perto de Osaka, centro comercial; Nagasaki, ao sul, de fácil acesso pelo Oceano Índico; Hakodate, ao norte, ponto importante de abastecimento para os baleeiros do Pacífico Norte. O último porto, Niigata, escolhido por estar situado na costa oeste, atraiu poucos visitantes porque os bancos de areia próximos impediam a aproximação de grandes embarcações. No ano de 1878, a viajante inglesa Isabella Bird constatou o desinteresse ocidental pela cidade:
“Niigata é um Treaty Port sem comércio exterior e quase sem residentes estrangeiros. Nenhum navio estrangeiro visitou o porto no ano passado ou neste. Só há duas firmas estrangeiras, e essas são alemãs, e apenas dezoito estrangeiros, dos quais, exceto os missionários, quase todos são empregados pelo governo. […] Há um vice consulado britânico, mas exceto como um degrau de ascensão, poucos aceitariam um posto tão monótono” [Bird, 1881: 218-219].
Outras duas eram as cidades abertas propriamente ditas, as metrópoles nipônicas: Tóquio e Osaka, centros da política e economia. Ambas estavam abertas à residência de estrangeiros mas não ao comércio portuário, restrição que afastou os comerciantes para os portos próximos de Yokohama e Kobe. Ao descrever o bairro ocidental em Tóquio, Bird transmitiu uma sensação nítida de abandono e confinamento:
“Tsukiji (“aterro”) é a Concessão, único lugar onde podem morar os estrangeiros que não estão empregados pelos japoneses. […] Como lugar para o comércio estrangeiro Tóquio provou ser um fracasso completo. Há pouquíssimos comerciantes estrangeiros e os hotéis estrangeiros são insignificantes e pouco procurados. A Legação dos Estados Unidos ainda se apega a Tsukiji, mas os ministros de todas as outras grandes potências moram dentro dos fossos na vizinhança dos departamentos do Governo. As estradas são amplas e bem mantidas, mas o aspecto da Concessão é entediante e desolado, e as pessoas moram perto o bastante umas das outras para se afligirem frequentemente com a visão das tristes atividades umas das outras. Há um ninho completo de edifícios de Igrejas Missionárias, um testemunho maravilhoso da unidade quebrada da Igreja Cristã, e o número de casas ocupadas por missionários é muito grande. Deve ser doloroso para eles precisarem se agrupar juntos neste local estreito” [Bird, 1881: 33-34].
Nada mais diferente de Niigata e Tóquio que o cosmopolitismo dos portos abertos mais ativos. Bird começou a viagem por Yokohama, o maior dos cinco, onde observou a mistura de culturas e pessoas ao descrever os passeios de riquixá (pequenas carroças de duas rodas movidas por tração humana) e o hotel em que se hospedou:
“É cômico ver comerciantes corpulentos, rosados e de aparência sólida, missionários, homens e mulheres, damas vestidas segundo a moda e armadas de estojos de cartões, compradores [agentes asiáticos de companhias ocidentais, termo emprestado do português] chineses e camponeses e camponesas japonesas disparando pela Rua Principal, que é como a rua principal decente e respeitável de uma dúzia de cidades esquecidas do interior inglês, em uma feliz inconsciência do ridículo de sua aparência; correndo, perseguindo, cruzando uns pelos outros, com seus corredores magros, educados e agradáveis em seus grandes chapéus em forma de tigelas invertidas, meias-calças azuis e casacas curtas azuis com emblemas ou caracteres brancos, esforçando-se, seus rostos amarelos pingando de suor, gritando e evitando colisões por um triz. Depois de uma visita ao consulado entrei em um riquixá e, com duas senhoras em dois outros, fui sacudida em um ritmo furioso por um manequinzinho risonho pela Rua Principal, uma rua estreita, sólida e bem pavimentada com calçadas bem feitas, meio-fio e sarjeta, com postes de ferro, lampiões a gás e lojas estrangeiras por toda sua extensão, até esse hotel silencioso recomendado por Sir Wyville Thomson, que oferece um refúgio dos sons fanhos de meus companheiros de viagem que foram todos para os caravançarás do Bund [avenida beira-mar]. O anfitrião é um francês, mas ele conta com um chinês; os criados são “meninos” japoneses com roupas japonesas; e há um “camareiro” japonês em um traje inglês impecável, que me horroriza perfeitamente pela polidez elaborada de seus modos. […] Nenhuma moeda estrangeira é aceita no Japão exceto pelo dólar mexicano [...]” [Bird, 1881: 19-20].
Cidades de muitas leis
A complexidade da vida nos portos abertos se refletia nos arranjos administrativos e espaciais. A maioria dos ocidentais de todas as nacionalidades ocupava um bairro próprio, chamado de assentamento ou concessão estrangeira (foreign settlement/concession), onde japoneses eram proibidos de morar. Algumas concessões tinham um conselho municipal formado pelos cônsules e membros eleitos da comunidade, responsável por taxas, obras públicas e segurança, inclusive mantendo pequenas forças policiais; em outras, a administração local era objeto de negociação entre ocidentais e japoneses.
Esses enclaves eram cidades em miniatura, como se depreende de uma listagem dos principais estabelecimentos de Kobe em um almanaque comercial de 1892, alguns situados fora da concessão propriamente dita, mas todos incluídos por serem de interesse de estrangeiros. A lista inclui dezenas de indivíduos e companhias indicados apenas como comerciantes, sem maiores detalhes, exceto por muitos deles serem agentes de uma ou mais companhias estrangeiras, em geral de seguros ou transporte marítimo. A maioria das pessoas tinha provável origem anglo-saxã, a julgar por seus nomes, mas não todos. A firma Otto Reimers e Companhia, a Faber & Voigt, a Raspe e Companhia (agente da Companhia de Seguros contra Incêndio Holandesa) e os irmãos Oppenheimer de Paris, entre outros, põem em evidência a natureza plurinacional da concessão. Alguns nomes sugerem uma possível nacionalidade portuguesa: um A. Ferreira Jorge na firma Delacamp & Cia., R. A. dos Remédios e F. X. dos Remédios no HSBC, a firma de corretores Mascarenhas & Cia., o contador A. J. de Souza na Hyogo News Company e outros.
Mais interessantes que os comerciantes não especificados são as menções a ramos de atividade precisos e a outros estabelecimentos além de empresas relacionadas ao comércio exterior. O almanaque revela a existência de consulados, vice-consulados ou agências consulares dos Estados Unidos, Portugal, Havaí, Grã-Bretanha (este também representava Áustria-Hungria e Espanha), Alemanha (representando também Itália e Rússia), França, Suécia-Noruega (encarregado da Dinamarca e Holanda), China e Bélgica; departamentos do governo do Japão (alfândega, estaleiro, Kencho ou governo municipal, tribunal, correio e telégrafo); duas lojas maçônicas, a Hyogo and Osaka (Hyogo e Osaka) e a Rising Sun (Sol Nascente); uma missão católica (dois missionários, Jules Chatron e Henri Perrin, presumivelmente franceses), meia dúzia de sociedades missionárias protestantes, quase todas americanas e com a presença significativa de missionárias solteiras; a câmara de comércio e o conselho municipal; clubes – Club Concordia (Clube Concórdia), Kobe Club (Club Kobe), Kobe Cricket Club (Clube de Críquete de Kobe), Kobe Lawn Tennis Club (Clube de Tênis de Grama de Kobe), Kobe Regatta and Athletic Club (Clube Atlético e de Regatas de Kobe); jornais – os diários Hyogo News (Notícias de Hyogo), Kobe Herald (Arauto de Kobe) e Kobe Chronicle (Crônica de Kobe); hotéis – Hyogo Hotel, International Hotel, Oriental Hotel e Hotel des Colonies; o banco inglês Hongkong and Shanghai Banking Corporation (Firma Bancária de Hong Kong e Xangai, hoje mais conhecida por sua sigla, HSBC); um importador de vinho e bebidas alcoólicas, um importador de instrumentos musicais e afinador de pianos, arquitetos, cabeleireiros, alfaiates, advogados, uma farmácia, uma fábrica de papel, hospital e consultórios médicos, leiloeiros, uma casa de bilhar e boliche e assim por diante [The Chronicle, 1892: 51-60]. Kobe ainda contava com um parque público, pista de corridas, grupos de teatro amador e, talvez mais importante para muitos moradores, “a proporção entre bares e saloons e outros estabelecimentos em Kobe era incomumente alta mesmo para aquela época, mas não foi registrada precisamente” [Williams, 1958: 71-72]. Em suma, uma cidade portuária, centrada nas atividades comerciais e afins (bancos, seguros, transporte), e ao mesmo tempo uma cidade de espaços públicos, atividades comunitárias e atendimento às necessidades dos moradores, um lugar que oferecia a opção de viver ali, em vez de apenas enriquecer e partir o mais rápido possível.
As pequenas concessões estrangeiras ficavam ao lado das “cidades nativas” muito maiores, onde também residiam alguns ocidentais, tais como empresários retardatários que não conseguiram um bom lote nas concessões. Finalmente, os chineses ocupavam uma posição liminar entre os assentamentos e as cidades japonesas. Devido à ausência de acordos entre China e Japão até 1871, a crescente comunidade chinesa ficou na condição inconveniente de nem poder viver nos assentamentos ocidentais nem nas cidades nativas, pelo que se agregaram em Chinatowns na periferia das concessões.
A população de Yokohama, maior porto aberto, dá uma ideia da proporção entre as nacionalidades presentes. No final de 1897, viviam na cidade 188.455 japoneses, 2015 chineses, 869 ingleses e 1227 americanos e europeus diversos [Smith, 1900: 27]. Os números indicam a predominância absoluta de japoneses sobre estrangeiros, a importância da presença chinesa e o predomínio numérico dos ingleses na comunidade ocidental. Contudo, os moradores fixos eram apenas uma parte dos estrangeiros presentes em qualquer dado momento: havia ainda numerosos marinheiros. No ano de 1885, 5206 homens da marinha mercante dos Estados Unidos visitaram os portos japoneses, sem contar os europeus e a tripulação de navios militares que passavam o inverno atracados [Hubbard, 1899: 326-327].
A maioria dos homens do mar trabalhava em condições severas: assinavam contratos de trabalho temporários, mudando constantemente de empregador; dependiam da força física, ficando velhos para o trabalho por volta dos cinquenta anos; dentro do navio estavam sempre sujeitos à vigilância e disciplina dos oficiais, sem possibilidade de fugir; desembarcar nos portos era uma concessão do capitão, não um direito, e a saída não autorizada podia ser punida como fuga [Quinlan, 2013]. A atividade de marinheiro era árdua e exercida em ambientes opressivos, equivalentes a instituições totais como prisões, manicômios e conventos [Goffman, 1974]. Compreensivelmente, eles tinham frequentes problemas legais, resultado de insubordinação, tentativas de deserção e da extravasão dos momentos de folga em terra, onde bebedeiras e brigas compensavam as agruras do serviço. Os cônsules ocidentais passavam boa parte do tempo julgando marinheiros.
O corpo consular era o que havia de mais próximo a um grupo governante nos portos. Dependendo do país que serviam, podiam ser funcionários de carreira ou apenas comerciantes bem relacionados, podendo mesmo ser cidadãos de outro país. As tarefas normais dos cônsules consistiam na promoção comercial e auxílio aos compatriotas. No Japão, como em outros lugares submetidos a uma relação semicolonial de subordinação sem perda formal da independência (China, Império Otomano e Sião, entre outros), somava-se a elas a aplicação da extraterritorialidade. Por exemplo, sempre que um português era réu em qualquer processo, civil ou penal, a competência para o julgamento cabia ao cônsul português mais próximo, e a lei aplicada era a de Portugal em vez da japonesa.
A extraterritorialidade se justificava retoricamente pelo orientalismo: a brutalidade das leis locais as tornaria inadequadas aos euroamericanos civilizados. Na realidade, atendia às finalidades de permitir um maior controle dos Estados ocidentais sobre seus cidadãos no exterior e implementar um sistema jurídico favorável ao desenvolvimento da economia capitalista: leis uniformes e codificadas, respeito aos contratos e à propriedade privada, relações de trabalho mercantilizadas. A extraterritorialidade era um instrumento de imperialismo legal [Kayaoglu, 2010]. Mas dificuldades práticas limitaram seu sucesso, a começar pelo despreparo da maioria dos cônsules, escolhidos mais pelo conhecimento comercial que legal – os ingleses foram a única exceção ao criar uma justiça extraterritorial composta de juízes profissionais para a China e o Japão. Ademais, os portos abertos eram verdadeiros labirintos jurídicos com mais de dez legislações em vigor, nenhuma aplicável a todos, e tantas outras autoridades responsáveis, onde um contrato entre duas pessoas de nacionalidades diferentes receberia interpretações distintas dependendo de qual era o réu e, por extensão, quem tinha a jurisdição e qual a lei. A preservação da ordem e das boas relações internacionais dependia da cooperação entre os vários cônsules, o governo local e as polícias ocidental e japonesa.
Contatos, trocas, atritos
Embora os portos abertos tivessem a finalidade última de entrepostos comerciais, a atividade humana extrapola o âmbito da economia. A função comercial inclusive estimulava o contato entre pessoas de origens diferentes e tornava impossível a vida segregada. O intercâmbio cultural ocorria em lugares inesperados: os primeiros dentistas japoneses praticantes da odontologia ocidental aprenderam as novas técnicas ao trabalhar como assistentes de W. C. Eastlack, cirurgião dentista da concessão estrangeira de Yokohama [Ohno e Hasaka, 2013]. No sentido oposto, artistas, intelectuais e viajantes encontraram nos portos as gravuras japonesas, influência importante sobre o Impressionismo [Lambourne, 2005].
As identidades fluíam de acordo com as circunstâncias. Filhos de ocidentais podiam nascer e crescer nos portos sem serem considerados japoneses, e sim cidadãos de terras que talvez pouco conhecessem. Europeus e americanos casavam entre si, e alguns homens iam além de frequentar os prostíbulos da “cidade nativa” e casavam com mulheres japonesas ou chinesas. Os jogos de futebol em Yokohama exibiam a variedade de categorias identitárias: “durante os belos invernos, os jogos ocorrem com frequência. Às vezes é a Inglaterra contra o mundo. Às vezes são os antigos moradores contra os novos. E às vezes é a frota [ocidental] contra o Assentamento” [Maclay, 1886: 27]. Mas uma categoria era um tanto menos fluida: a divisão imaginada entre ocidentais e orientais. Aqueles que cruzavam a linha ou a deixavam menos nítida ao adotar elementos da cultura alheia chamavam a atenção e provocavam estranhamento.
Os relatos de viajantes e descrições de residentes euroamericanos passam uma impressão ambivalente dos efeitos transformadores que o contato produzia nas pessoas. Um ocidental adotar costumes japoneses era em geral motivo de desprezo, considerado uma queda do estado de superioridade dos “civilizados”. Segundo o português Pedro Gastão Mesnier, era praticamente um retorno a um estado primitivo de simplicidade ociosa e atemporal:
Em Kobe, vivem alguns negociantes ingleses, homens ricos e ilustrados que se assimilaram [sic] em parte os usos e costumes japoneses, e já não querem ouvir falar em voltar para a Europa. Cercados por essa natureza sempre risonha, acostumados a viver no meio dum povo essencialmente amável, não pensam senão com horror no céu anuviado e no povo grosseiro da Grã-Bretanha. Não precisam para a sua felicidade dos gozos mais elevados que somente as sociedades sumamente civilizadas podem dispensar, afastaram-se da corrente ativa e voraginosa do progresso, e foram abrigar-se em sossegado remanso. Um escritor francês, Taine se bem me recordo, afirma em uma das suas obras, que o inglês tem uma tendência mui decidida para reverter constantemente ao estado selvagem” [Mesnier, 1874: 112].
A adoção seletiva japonesa da cultura ocidental, um traço marcante da Era Meiji, também causava incômodo. Mostrava o potencial do país para o progresso e a sensatez do povo em aprender com uma cultura superior, ao contrário da suposta arrogância chinesa. Por outro lado, os ocidentais frequentemente viam o Japão através de lentes românticas e essencialistas. Exaltavam o caráter exótico e feérico de uma “cultura tradicional”, natureza encantadora, pessoas simples e felizes e valores estéticos apurados. Nessa visão, a ocidentalização representava uma perda de inocência: o Japão renunciara às virtudes do passado e passara a ser uma cópia imperfeita do Ocidente. Bird estava entre os críticos da mudança:
“Carruagens e casas em estilo inglês, com tapetes, cadeiras e mesas estão se tornando cada vez mais numerosas, e o mau gosto que regula a compra de móveis estrangeiros é tão pronunciado quanto o bom gosto que em toda parte preside à decoração das casas em estilo puramente japonês. Felizmente essas inovações caras e impróprias pouco afetaram os vestidos das mulheres, e algumas senhoras que adotaram nossa moda desistiram por causa do desconforto e das muitas dificuldades e complicações” [Bird, 1881: 80].
O japonólogo inglês Basil Hall Chamberlain atacou a modernização pelo mesmo ângulo dos trajes femininos, que percebeu ser parte de um conjunto de mudanças mais amplas:
“Em 1886, a Corte encomendou vestidos de Paris – perdão, de Berlim – e espartilhos, e aqueles sapatos europeus em que as senhoras japonesas têm dificuldade de andar sem parecer que beberam um pouco mais do que deviam. É claro que a Corte logo encontrou imitadores. De fato, para incentivar as hesitantes, foi emitida uma espécie de notificação que “recomendava” a adoção de roupas europeias pelas senhoras do Japão. […] Desde então houve uma pequena onda de reação, em consequência da qual muitas senhoras sem os recursos ou o gosto precisos para fazer justiça aos vestidos europeus voltaram alegres ao traje nacional. Mas a permanência dessa reação não é esperada por aqueles observadores que entendem que a questão do traje não depende dos próprios méritos, mas forma parte de toda uma civilização que o Japão não poderia mais rejeitar mesmo se quisesse” [Chamberlain, 1891: 118-119].
Os críticos essencialistas só podiam protestar contra o hibridismo porque ele acontecia e continuou acontecendo. O Japão que desejavam preservar entrou a toda velocidade na modernidade capitalista sem perder os traços próprios, mediante uma síntese entre a cultura pré-existente e os empréstimos do exterior. Em troca, enriqueceu a arte ocidental com novas perspectivas. O sistema das concessões estrangeiras perdurou até a entrada em vigor de tratados revisados em 1899; a partir de então, visitantes puderam circular livremente pelo interior, em troca da perda de privilégios legais e bairros reservados. Hoje, as relações de poder mudaram, enquanto os contatos, intercâmbios e ocasionais choques continuam. O empreendimento iniciado nos portos abertos do litoral japonês prossegue até o momento presente.
Referências
Emannuel Henrich Reichert é Doutor em História pela Universidade de Passo Fundo. Agradeço a Fundação UPF pela bolsa de estudos do doutorado, que resultou na tese na qual este artigo se baseia em grande parte.
AUSLIN, M. R. Negotiating with Imperialism: The Unequal Treaties and the Culture of Japanese Diplomacy. Cambridge: Harvard University Press, 2004.
BIRD, I. L. Unbeaten Tracks in Japan, volume 1. New York: G. P. Putnam’s Sons, 1881.
CHAMBERLAIN, B. H. Things Japanese. 2. ed. rev. London: Kegan Paul, Trench, Trübner & Co., 1891.
THE CHRONICLE & Directory for China, Corea, Japan, the Phillipines, Indo-China, Straits Settlements, Siam, Borneo, Malay States, etc. For the year 1892. Hong Kong: Daily Press Office, 1892.
GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.
HAHN, S. A Nation without Borders: The United States and Its World in an Age of Civil Wars, 1830-1910. New York: Penguin, 2016.
HUBBARD, R. B. The United States in the Far East: or, Modern Japan and the Orient. Richmond: B. F. Johnson Publishing Co., 1899.
KAYAOGLU, T. Legal imperialism: sovereignty and extraterritoriality in Japan, the Ottoman Empire, and China. New York: Cambridge University Press, 2010.
LAMBOURNE, L. Japonisme: Cultural Crossings between Japan and the West. New York: Phaidon Press, 2005.
MACLAY, A. C. A Budget of Letters from Japan: Reminiscences of work and travel in Japan. New York: A. C. Armstrong & Son, 1886.
MESNIER, P. G. O Japão: Estudos e impressões de viagem. Macau: Typographia Mercantil, 1874.
OHNO, T e HASAKA, Y. The dawn of modern dentistry in Japan: The transfer of knowledge and skills from foreign dentists to Japanese counterparts in the Yokohama Foreign Settlement. Japanese Dental Science Review: Tokyo, v. 49, n. 1, 2013, p. 5-13.
QUINLAN, M. Precarious and hazardous work: the health and safety of merchant seamen, 1815-1935. Social History: London, v. 38, n. 3, 2013, p. 281-307.
SMITH, D. W. European Settlements in the Far East. London: Sampson Low, Marston & Company, 1900.
WILLIAMS, H. S. Tales of the Foreign Settlements in Japan. Tokyo: Charles E. Tuttle Co., 1958.
Muito interessante! Levi-Strauss colocou certa vez que o Japão capitalizou o seu passado... Tendo como base sua pesquisa, de que maneira esse processo pode ser visto hoje?
ResponderExcluirVitor, no período que estudo o Japão estava fazendo duas imensas reinvenções do passado que produzem efeitos ainda hoje. Uma foi a própria ideia de uma "restauração" e não uma "revolução" como houve na França, o que o Lévi-Strauss observou. Restauração do quê? Do governo imperial. O tennô ou soberano celestial (conhecido fora do Japão como "imperador"), um personagem que há séculos não tinha poder político efetivo (ao conversar com estrangeiros, os oficiais dos Tokugawa riam da ideia de o imperador decidir alguma coisa) volta a comandar a nação. O passado é reinterpretado de forma que o tennô sempre foi o governante legítimo e os séculos de xogunato foram usurpações. Mas o Japão Meiji é completamente diferente do Heian, além de que o imperador mais legitimava o mando da oligarquia que governava ele mesmo. Grosso modo, Meiji lembra Dom Pedro II: poderes quase ilimitados na lei, enquanto na prática apenas às vezes interferia na atividade dos ministros. Com a ocupação americana, o papel do imperador é reinventado outra vez: de comandante passa a ser a personificação simbólica da nação. Hoje, a grande briga é se uma mulher pode ou não ser tennô, em razão do tamanho pequeno da família imperial e da igualdade de gênero ainda limitada no Japão.
ExcluirA outra tradição inventada nesse momento é a figura do samurai. O samurai de fato existiu. Como profissionais da violência de todas as épocas, se orgulhava da honra enquanto não hesitava em ser pragmático quando preciso (a ascensão dos Tokugawa ao poder, entre tantos exemplos, foi uma traição ao filho de Hideyoshi. Mas Hideyoshi também só governou por trair os descendentes de Nobunaga, que foi ele mesmo assassinado por vassalos rebeldes...). Era uma minoria da população, uma elite governante. E, durante os séculos de paz dos Tokugawa, se "domesticou" de forma semelhante à nobreza europeia e passou a integrar o aparato de governo. Entre Shimabara e a chegada dos americanos, um intervalo de mais de duzentos anos, quantas guerras e batalhas houve no Japão para o samurai mostrar sua habilidade militar? Exatamente.
Esse personagem, ao desaparecer do cenário, se torna um ideal de guerreiro honrado e, mais importante, o modelo por excelência do japonês. Os princípios do bushidô, antes restritos a uma casta, passam a ser princípios éticos válidos para todo o povo. Essa reinvenção também esteve a serviço da criação de um Estado-nação moderno e continua em certa medida ainda hoje, mesmo que muito diminuída após a II Guerra.
Aliás, eu sugiro comparar a invenção do samurai com um caso brasileiro semelhante: o gaúcho. Existem analogias curiosas.
ExcluirNão sei o quanto disso é de conhecimento comum fora do RS, mas em linhas gerais: o gaúcho, historicamente, é o pequeno homem do campo. O tropeiro, o pequeno agricultor ou, mais comumente, o vaqueiro empregado de um patrão latifundiário. Havia uma relação pessoal entre senhor e subordinado (como cavaleiro/suserano ou samurai/daimiô) e uma valorização de virtudes guerreiras "masculinas": coragem, belicismo, hospitalidade, etc.
Ao contrário do samurai, o gaúcho nunca foi um grupo governante. Mas os dois eram um tipo específico entre outros. Os moradores das cidades do RS não eram gaúchos. Os imigrantes e seus descendentes também não. Nem os escravos. Nem os latifundiários.
Eventualmente, os dois grupos ficaram obsoletos. O samurai perdeu a razão de ser diante do surgimento de um exército de massas nacional. O gaúcho, no começo do século passado, foi sendo expulso do campo devido à concentração cada vez maior das terras.
Em seguida, a tradição é inventada. O Estado exalta o samurai, transformado em modelo para todos os japoneses, um macho honrado e afinado com suas tradições, pronto a servir fielmente o Estado. No RS, alguns descendentes de gaúchos, agora moradores de cidades e insatisfeitos com a modernidade, criam o personagem gaúcho. Uniformizam costumes antes variados, pegam emprestado dos gaúchos do outro lado da fronteira, na Argentina e Uruguai (o gaúcho esteve presente em toda a região platina), idealizam a mais não poder e, finalmente, alçam esse personagem a ideal de todos os riograndenses. Uma combinação de nostalgia anti-moderna e projeto de poder, pois o movimento tradicionalista, MTG, se coloca como autoridade para definir o que é ou não gaúcho.
Nos dois casos, uma categoria real, mas em declínio, é idealizada e generalizada a toda a sociedade.
Excelente texto. A questão que trago é: os japoneses lidam há muito tempo com esse hibridismo, no entanto, o Japão é até hoje conhecido como um dos países mais xenofóbicos do leste asiático, logo, que tipo de relação podemos fazer entre esses dois aspectos?
ResponderExcluirAss.: Alessandro Henrique da Silva
Alessandro, na Era Meiji, com que estou mais familiarizado, os dois aspectos caminhavam juntos: a modernização, seguindo o modelo ocidental, atendia ao objetivo da segurança nacional. Muitos acreditavam na possibilidade de fazer uso apenas instrumental da tecnologia estrangeira enquanto ficava preservado o yamatodamashii tradicional. O processo de modernização pode ser considerado um esforço em mudar para permanecer o mesmo.
ResponderExcluirTentando trazer o problema para o presente, e especulando um pouco mais, na minha opinião existem dois aspectos relevantes. O primeiro é histórico: a ocupação do Japão pós-guerra seguiu uma linha muito conservadora devido ao início da Guerra Fria e nunca foi feito um acerto de contas com o passado imperialista recente da forma que os alemães fizeram com o Holocausto. O imperialismo japonês continua sendo uma ferida aberta nas relações entre os países da região, o que se vê a cada tentativa de reinterpretar o artigo 9o da Constituição, entre outros momentos.
O segundo é mais propriamente cultural. O Japão "não sabe" se é ou quer ser um país asiático ou ocidental desde a Restauração Meiji. Daí seguem conflitos internos pela identidade e choques entre abertura e xenofobia semelhantes ao que se observa em outros países em situação parecida, como a Rússia (entre Ásia e Europa) e talvez o Brasil (entre Ocidente, uma América Latina com traços próprios e a herança africana e indígena).
Para fazer uma generalização: a cultura japonesa favorece a apropriação de partes de outras culturas, um pouco como a famosa antropofagia do Brasil, mas é muito mais fechada quando se trata de integrar pessoas de fora na sociedade.
interessante texto,referente a questão do contato sabemos que era quase impossível não manter as diversas culturas segregadas,por fim observo a conservação da própria cultura japonesa como esse fato pode ainda trazer sentimentos como o nacionalismo décadas posteriores?
ResponderExcluirJefferson Santos
Jefferson,
ExcluirEstou na dúvida: você está perguntando da Era Meiji ou de hoje? Sobre a Era Meiji, o nacionalismo foi promovido deliberadamente a fim de construir um Estado-nação moderno e substituir os sentimentos de pertencimento a uma província ou lealdade a um clã de daimiôs locais. As escolas e o exército tiveram papéis de destaque aí, mais ou menos como em outros países ao passarem por processos semelhantes - "nossos ancestrais, os gauleses" e tudo o mais.
O nacionalismo japonês atual exigiria um livro e mais familiaridade com o assunto do que eu tenho, mas vamos lá. Em resumo, muito se deve à Guerra Fria. Veja o caso da Alemanha: cada parte logo foi integrada em um bloco continental e conciliada com os vizinhos do mesmo bloco. Os alemães hoje estão entre os principais defensores da União Europeia. O Japão foi colocado sob a tutela dos Estados Unidos contra quase todos os vizinhos: a União Soviética, a China comunista, a Coreia do Norte, o Vietnã. Daí eles têm uma identificação maior com os Estados Unidos que com os países cultural e geograficamente mais próximos - talvez um pouco como o Brasil e sua relutância em ser ou não latino-americano.
perdão não especifiquei, seria sobre a era meiji
ExcluirJefferson santos
Olá!
ResponderExcluirGostei muito do texto, e um aspecto me chamou atenção nas citações, principalmente de Isabella Bird - pesquiso história do vestuário, e a autora menciona algumas coisas sobre as roupas das pessoas. Assim como em outros segmentos da História, não é comum encontrar material sobre o Oriente na literatura sobre indumentária. Seriam esses relatos de viajantes um caminho adequado, relativamente embasado, para um contato inicial com esses artefatos? Há outros, além de Bird, comentando a vida cotidiana da Ásia/do Japão?
Outra coisa: fiquei curiosa pela sua Tese, ela está disponível no site da UPF?
Obrigada!
Natália, um ponto de partida pode ser o artigo "Dress" no Things Japanese do Basil Hall Chamberlain, uma espécie de minienciclopédia vitoriana sobre o Japão, de onde tirei uma das citações.
ExcluirOs relatos de viajantes são uma fonte muito boa porque achavam tudo exótico e digno de descrição, fosse as pessoas, a natureza, as construções ou a sociedade. Julgavam tudo pelos seus critérios, claro. O grau de detalhamento dependia da capacidade de observação e interesse de cada um, mas a grande maioria no mínimo menciona o vestuário de passagem por ser uma diferença evidente. Como curiosidade, vou passar uma das descrições mais pitorescas - o português Wenceslau de Moraes falando das roupas femininas, com um ar visível de safado: https://archive.org/stream/dainipponogrande00mora#page/154/mode/2up
A tese deveria estar ali, mas está acontecendo alguma demora burocrática. Mande um e-mail para ehr.historia@yahoo.com.br e eu passo uma cópia.
Parabéns, texto muito interessante! O artigo informar que com a política de portas abertas o Japão “restringir espacialmente a presença ocidental, (...) Fora delas, a circulação estrangeira se limitava ao pessoal diplomático, especialistas contratados pelo governo”. Porém compreendemos que a cultura japonesa é decorrência das várias ondas de imigração até o final do século XIX. Não conseguiu assimilar esse andamento de restrição política para a hibridação?
ResponderExcluirCely,
ExcluirO Japão tem um mito de ser um país etnicamente homogêneo. Para os mais conservadores, é um dos elementos do nihonjinron, ou excepcionalismo japonês. É só um mito mesmo, que ignora os ainu, os imigrantes coreanos, chineses, as inúmeras levas de viajantes estrangeiros que fizeram filhos por lá e assim por diante. Só que tem uma força política grande - o sistema político japonês é muito conservador. Há resistência contra o estrangeiro ser assimilado como japonês. Existem descendentes de coreanos, de famílias que trabalham no Japão desde a guerra, que não têm cidadania. Mesmo os descendentes brasileiros que imigram para o Japão recebem um tratamento diferente.
O controle na Era Meiji provavelmente tinha um pouco disso. Em grande parte, porém, a causa era a centralização do poder no Estado. Livre acesso ao interior significava estrangeiros comprando terras, entrando no comércio interno, pregando livremente suas religiões esquisitas. E tudo fora do controle do governo, porque eles tinham direito à extraterritorialidade, de serem julgados pela lei do país de origem por oficiais de lá. Isso iria ferir de morte o poder estatal necessário para o projeto desenvolvimentista dos governantes.
Muito da diplomacia da Era Meiji se resume em diplomatas ocidentais pedindo a abertura do interior do território, diplomatas japoneses respondem pedindo que acabem com a extraterritorialidade primeiro, e os ocidentais replicam dizendo que para isso o Japão tem que se civilizar antes, inclusive abrindo o acesso ao interior.
Mais uma vez parabenizo-o pelo estimulante artigo, Emmanuel.
ResponderExcluirEmiliano Unzer Macedo.
Bom dia, parabéns pelo trabalho. Na última parte do texto, o autor explora a questão dos atritos nos portos abertos. A minha questão é voltada para possíveis conflitos em termos de religião, principalmente se termos em vista a importância da sacralidade do imperador para legitimação do governo Meiji, é possível perceber "lamentações" dos missionários estrangeiros nessas cidades portuárias acerca das religiões japonesas (principalmente o xintoísmo)? E o inverso, como os japoneses viam as religiões e os missionários ocidentais que agora estavam legalmente no Japão (lembrar da expulsão do cristianismo durante o período Tokugawa)?
ResponderExcluirLeonardo Henrique Luiz.
Leonardo,
ExcluirComeçando pela última pergunta: o cristianismo não repetiu na Era Meiji o sucesso que fez durante o século português. Uma minoria foi convertida, apesar de muitos terem alguma exposição ao cristianismo. A religião, como praticamente toda a cultura ocidental, foi investigada pelos intelectuais e estadistas que queriam saber o segredo do sucesso do Ocidente e o que exatamente deviam adotar. As respostas predominantes foram a continuação da religiosidade tradicional (facilitada pela elaboração do xintoísmo de Estado) e uma visão de mundo mais secular influenciada pelo darwinismo social de Herbert Spencer.
Para complementar, vou sugerir meu artigo "Um sujeito bêbado como um inglês", análise densa de um relato de viagem. O guia japonês de Isabella Bird era um dos protagonistas e revela muito da visão dos japoneses expostos à cultura ocidental: http://www.seer.veredasdahistoria.com.br/ojs-2.4.8/index.php/veredasdahistoria/article/view/70
Quanto aos missionários estrangeiros, sim. As lamentações estão por toda parte. Para eles, o povo adora ídolos e segue uma mistura supersticiosa de budismo e xintoísmo, os sacerdotes budistas ou são indolentes ou se mobilizam em reação ao cristianismo. O mais interessante nos missionários, entretanto, é uma atitude ambígua diante do imperialismo. Eles sabiam perfeitamente da diplomacia das canhoneiras que abriu o Japão e permitia sua presença ali, laços com diplomatas e comerciantes eram frequentes - mas alguns percebiam que esse mesmo imperialismo causava uma hostilidade justificada e prejudicial ao trabalho missionário. Os missionários foram o principal grupo a pressionar pelo fim da extraterritorialidade para diminuir a rejeição aos estrangeiros e circular pelo interior.
Ótimo texto, com um tema muito importante.
ResponderExcluirAdemais, o hibridismo aconteceu de maneira tão forte que até hoje, o padrão de beleza japones (coreano e chinês também) são europeus: olhos grandes, queixo fino, etc.
Muito interessante o ponto em que relata o menosprezo americano e europeu ao estilo de vida japones, e ao sentimento de superioridade e civilizado ao comparada com o Japão, de certa forma o Japão fez o mesmo ao entrar e colonizar a Coreia, devido a justamente essa aperfeiçoamento capitalista que estava vivendo no periodo.
Mas não encontro vestígios de que os japoneses aceitassem ou até mesmo concordassem com esse ponto de "superioridade europeia'. Ou, pelo período de transformação, foi aceito que esse sentimento tivesse sido um dos motivos pela rapidez da aceitação das novas culturas presentes no período?
Camila Regina de Oliveira
Camila, um texto contemporâneo ilustrativo da relação complexa entre japoneses e cultura ocidental é o A Conservative do Lafcadio Hearn, no livro Kokoro. Na visão mais comum, a superioridade européia era técnica, material, enquanto os valores culturais japoneses eram superiores aos ocidentais. Havia um sentimento de que a civilização ocidental era mais forte mas poderia ser igualada, nem tanto uma crença na superioridade do ocidental como ser humano.
ExcluirBoa Noite, Emannuel. Parabéns pela elaboração desse trabalho, expandiu a minha percepção sobre o Japão e o seu contato com o exterior (é uma área que me desperta para a pesquisa). Bom, a minha pergunta é em relação ao termo "civilizar". Através de sua pesquisa, qual foi a posição dos japoneses (caso queira especificar, seria de grande ajuda) em relação ao movimento "civilizador" do Ocidente? Como era entendido a civilização?
ResponderExcluirYgor Yuji Utida Porto.
Ygor,
ExcluirA reação japonesa foi defensiva. O país foi inserido à força na comunidade internacional e via países em situação semelhante sendo invadidos ou subjugados, até mesmo a China, para muitos intelectuais ainda um centro de civilização. A modernização teve por objetivo a defesa nacional : ter poder suficiente para manter a independência e revisar os tratados desiguais. Nos primeiros anos de abertura, o interesse na cultura ocidental foi amplo. Houve até uma discussão sobre tornar o inglês a língua oficial. Pelas décadas de 1880 e 90 a maré aos poucos vira, o interesse fica mais seletivo e cresce a valorização da cultura japonesa. Existe um desejo de ser equivalente ao Ocidente em modernidade e copiar as fontes da sua força material adaptadas às características nacionais. O intelectual Fukuzawa Yukichi falava em deixar a Ásia, quer dizer, abraçar a modernidade e rejeitar a China como modelo cultural. Desse discurso, era um passo até o "fardo do homem japonês " de ajudar os irmãos asiáticos no caminho rumo à civilização, ideologia subjacente ao imperialismo da Era Meiji e posterior.
Ygor,
ExcluirDe forma geral, a Era Meiji se destacou por um forte fluxo de importação da cultura ocidental. O principal intelectual da época, Fukuzawa Yukichi, falava que o Japão devia deixar a Ásia, quer dizer, abraçar a modernidade europeia e rejeitar a China como modelo de civilização. Daí para a noção de "fardo do homem japonês" de ocupar os países vizinhos para resgatá-los do atraso era só um passo.
Numa periodização simples, existem duas fases um pouco diferentes. No bakumatsu e primeiros anos da Era Meiji, até cerca de 1880 ou 1890, o interesse é motivado pela fraqueza. O Japão foi inserido na comunidade internacional à força e está vendo países em situação semelhante sendo subjugados e humilhados, como a China. A modernização japonesa é acima de tudo um projeto de defesa nacional para evitar que a mesma coisa aconteça ali também. O Ocidente é ao mesmo tempo desprezado por ser o agressor e fascinante por sua força. Nesse início, a cultura do Ocidente é importada sem muito critério por ainda ser pouco conhecida. Empregados estrangeiros são contratados para transmitir conhecimento e técnicas, jovens da elite são enviados para estudar no exterior e missões diplomáticas investigam melhor os diferentes modelos da Europa e Estados Unidos - o resultado é a mescla de uma constituição germânica, códigos afrancesados, marinha britânica, etc. Quase todos os aspectos da sociedade são postos em discussão alguma vez, havendo até a sugestão de adotar o inglês como língua oficial.
Posteriormente, há um certo equilíbrio entre a adoção do modelo ocidental e a preservação da cultura local. Como mencionei na resposta anterior, ganhou espaço a concepção de "técnica ocidental, coração oriental". A vitória contra a China em 1895, a revisão dos tratados um ano antes e a vitória contra a Rússia em 1905 tiveram um peso forte nessa reavaliação.
Saudações! Ótimo texto. Parabéns!
ResponderExcluirNo texto “... Europeus e americanos casavam entre si, e alguns homens iam além de frequentar os prostíbulos da “cidade nativa” e casavam com mulheres japonesas ou chinesas”, há relato de união matrimonial entre os povos. Teria algo a informar a respeito de como o Japão via a união de seus japoneses com os ocidentais? Houve resistência?
Luiz Adriano Zaguini
Saudações! Ótimo texto. Parabéns!
ResponderExcluirNo texto “... Europeus e americanos casavam entre si, e alguns homens iam além de frequentar os prostíbulos da “cidade nativa” e casavam com mulheres japonesas ou chinesas”, há relato de união matrimonial entre os povos. Teria algo a informar a respeito de como o Japão via a união de seus japoneses com os ocidentais? Houve resistência?
Luiz Adriano Zaguini
Luiz,
ExcluirNa tese analisei algumas uniões mais ou menos bem sucedidas, duas em particular. Uma envolveu uma prostituta "alugada" pelo bordel a um empreendedor americano. Viviam publicamente como marido e mulher, tiveram um filho, ela ajudou a organizar os negócios dele, tudo foi bem por alguns anos. Até que ele saiu do Japão por um tempo, voltou com uma esposa branca e inclusive negou que o filho era dele.
E o caso de um marinheiro americano que abriu um bar num porto, casou com uma japonesa e depois de ela morrer continuava visitando os pais dela para lidar com a perda. Ficou tão desnorteado que com quase 70 anos queria voltar à marinha para enfrentar os espanhóis em 1898.
Então, tudo indica que entre as classes baixas a necessidade de apoio afetivo e econômico levava a arranjos improváveis entre grupos de elite. Sei que do lado ocidental existia preconceito contra a ideia de um homem assumir uma esposa japonesa. Só alguns excêntricos mais nativizados fizeram isso abertamente, como o Lafcadio Hearn. Mais comum era ter amantes ou esposas extraoficiais às escondidas. Suspeito que membros de famílias tradicionais japonesas interessados em casar com estrangeiros deviam encontrar uma resistência semelhante, mas não encontrei casos para confirmar nas fontes que utilizei.
Gostaria de saber se no Período Edo, ou Era Tokugawa, (período que antecedeu a Era Meiji) o Japão era um país desestruturado politicamente ou não. Se sim, como ocorreu sua unificação e como deu-se início o processo expansionista que se estendeu até a 2ª Grande Guerra?
ResponderExcluirThais da Silva Osga
Thais,
ExcluirExiste um longo debate sobre o que exatamente era o regime Tokugawa. Absolutismo? Feudalismo? Uma mistura? O xogunato exercia poderes quase absolutos em algumas esferas, enquanto os domínios tinham autonomia extremamente ampla no restante (até moedas próprias em alguns domínios). Gosto da teoria que Mary Elizabeth Berry desenvolveu no livro Hideyoshi: o reunificador do Japão e os Tokugawa que lhe sucederam criaram um regime federal. O governo central reservou para si alguns poderes (contato com o tennô, relações exteriores, defesa nacional, sankin kotai) e se envolveu em uma combinação de competição e cooperação com os daimiôs, deixando que administrassem os domínios como preferissem, apesar dos frequentes disputas em uma ou outra área.
O fim do "federalismo" Tokugawa foi obra do governo Meiji. Na década de 1870 os daimiôs cederam o controle sobre suas províncias, que foram reorganizadas e governadas por funcionários nomeados por Tóquio. Em troca receberam pensões generosas por alguns anos. Parte do empenho modernizante, mesmo porque o daimiô típico da era tinha pouco envolvimento administrativo.
Aliás, a capacidade japonesa de montar governos em torno de figuras nominalmente poderosas e na prática afastadas da administração é impressionante. Aconteceu com imperadores, xoguns e daimiôs.
Para o processo expansionista, indico o artigo do Emiliano Unzer Macedo, neste simpósio, chamado "O imperialismo japonês na Ásia".